Rio Grande do Sul

SOLIDARIEDADE

‘A arte neste momento pode ser um afeto, um abraço, um respiro e um pouco de alegria para a população que perdeu tudo’

Centena de voluntários tem levado atividades culturais aos abrigos nas regiões atingidas pelas enchentes no estado

Brasil de Fato Porto Alegre |
"É muito difícil levar arte para pessoas que não têm onde morar, que estão desalentadas, mas é preciso preencher as vidas com um pouco de criatividade" - Foto: Arquivo Pessoal

“A Arte, nas suas diferentes formas de expressão, é humanizadora, é curativa. E, nesse momento, mais que nunca, estamos necessitando, todos nós, de muita arte. Levar a Arte aos abrigos é acarinhar nossos irmãos que tanto perderam; é levar um pouco de alegria e leveza, em meio a essa catástrofe que se abateu sobre nós.”

A afirmação é da professora aposentada, escritora, contadora de histórias e mediadora de leitura, Vera Maria Hoffmann, uma das artistas voluntárias da rede solidária. Projeto se formou em São Leopoldo para levar arte as pessoas desalojadas da cidade, em decorrência da maior tragédia climática que se abateu no Rio Grande do Sul. Ela escreve arte em maiúsculo para ressaltar a importância das atividades culturais neste momento

De acordo com o mais recente boletim da Defesa Civil divulgado na manhã desta terça-feira (21), dos 497 municípios gaúchos, 464 foram impactados pelas fortes chuvas e enchentes recentes no estado, afetando 2.339.508 pessoas. Mais de 580 mil estão desalojadas, e 72 mil em abrigos, muitos destes montados em escolas, ginásios. 

“A gente vê muitos ataques nas redes sociais, às vezes opiniões de políticos influentes, que ainda é muito baseado naquela visão equivocada, da ideia da pirâmide das necessidades, de que tem que pensar só na comida, e na sobrevivência e não na arte, na cultura. Ou então uma visão mais nefasta de que a cultura corrompe, doutrina. Duas visões muito nocivas. A gente entende que as necessidades primárias estão sendo atendidas, até certo ponto, com todas as dificuldades. E nesse momento a gente sente na pele, nos abrigos, que vai surgindo uma necessidade de ressignificar o momento, mesmo para as pessoas abrigadas”, afirma o cineasta e historiador da Arte, Giordano Gio, que faz parte da rede Cine Vida, em Porto Alegre.


No Centro Vida, todos os dias tem sessão de cinema promovido pelo projeto Cine Vida / Foto: Projeto Cine Vida

Para a cantora e atriz, Aline Lasch Fernandes (Ally), integrante da rede Solidária de São Leopoldo, a arte surge nos abrigos como um respiro para todos. “As pessoas tiveram que sair dos seus lares, estão vivendo em espaços improvisados com carinho pelos voluntários. Mas, ainda assim, o espaço de cada um é apenas um colchão. Não sabem o que vão encontrar quando voltar para casa, como farão para viver depois dessa catástrofe. A arte lembra que, mesmo em meio a todo horror, ainda podemos sorrir e sentir alegria.”

Formado em Design Visual e atuando como palhaço, Walter José Diehl, que também integra a rede solidária, complementa ressaltando que as pessoas nos abrigos estão precisando de muitas coisas, e a arte é uma delas. “Mesmo antes das enchentes essas pessoas têm suas necessidades de arte, de cultura, de informação, de educação, de diversos acessos. Essa crise só deixa mais explícita a situação precária de muitas pessoas. É muito difícil levar arte para pessoas que não tem onde morar, que estão desalentadas, mas é preciso preencher as vidas com um pouco de criatividade, de emoção, de alegria, e a arte ajuda nisso.”

Artistas em Rede Solidária 

Criada em 10 de maio, a rede que inicialmente contava com três integrantes, hoje possui mais de cem voluntários, que envolve teatro, circo, dança, música, artes visuais, literatura, entre outros.

A cantora, compositora, produtora cultural e atualmente diretora de Cultura em São Leopoldo, Luisa Gonçalves, conta que vinha pensando desde o início do agravamento da catástrofe se seria o momento certo de começar a levar arte a abrigos em um momento tão desolador. Uma amiga fez a provocação em uma rede social e plantou a semente para o início das atividades culturais. 

“Uma vez uma vizinha bateu no portão da minha casa, pedindo para que eu fizesse uma atividade com as crianças no abrigo. Pois no início as crianças brincavam e interagiam e agora elas começaram a sentir bastante, ficaram tristes ao entenderem que ainda demorariam muito para voltarem para suas casas. Eu estava com infecção respiratória depois de ficar 1h30 com água até o pescoço tentando resgatar minha mãe, não conseguia cantar nem me erguer direito. Então entendi que SIM era o momento certo, e não dava mais para esperar. Comecei a ligar para artistas conhecidos, fiz um grupo 'Artistas em Rede Solidária'”, conta a diretora. 


Muitos dos artistas que integram a rede estão sem poder trabalhar / Foto: Arquivo Pessoal

Ao falar dos desafios, Luisa comenta que muitos dos artistas que integram a rede estão sem poder trabalhar, sem nada. De acordo com ela, alguns estão desalojados, com a casa embaixo d'água como milhares de pessoas. “Também ficaram sem seus equipamentos de trabalho, mas estão lá todos os dias inspirando as pessoas e entregando todo afeto do mundo através da arte. Também há falta de recurso para deslocamento e temos feito um trabalho coletivo de irmos ajudando uns aos outros com equipamentos diversos, para que o trabalho possa acontecer."

A agenda é atualizada diariamente com diversas atividades em muitos abrigos da cidade. As atividades acontecem de domingo a domingo.

“A arte neste momento pode ser um afeto, um abraço, um respiro e um pouco de alegria para a população que perdeu tudo, que estão fora de suas casas ainda sem saber como será”, frisa Luisa. 

São Leopoldo tem 14.733 pessoas abrigadas, em 109 abrigos, sendo 18 desses fora da cidade.

Receptividade 

“A primeira apresentação que fiz, foi em um abrigo que tem muitas crianças. Os voluntários haviam arrumado o espaço com muito carinho. Até com cadeirinhas pras crianças assistirem. Foi incrível a energia! As crianças amaram, cantaram junto, se divertiram. Em outra apresentação, o abrigo tem apenas sete crianças atípicas. Foi uma apresentação mais intimista, uma contação de história com elementos físicos pra despertar o interesse das crianças. E foi incrível ver aqueles pequenos interessados na história, participando”, conta Ally.

Ela se apresenta com o grupo Aquarela, que faz músicas para o público infantil. “Faço contação de história, com interpretação de personagens, para as crianças. Eu me sinto útil! Sinto que a arte, que eu tanto amo, é um presente ao mundo, pois entrega ricas experiências ao público e ao artista.”

Com o rosto pintado, Walter leva a palhaçaria aos abrigos. Ele conta que a receptividade tem sido maravilhosa. “Sinto que existe uma grande demanda por atenção, já que as crianças se identificam com o universo do palhaço e do circo, pois são criativas, espontâneas e incríveis. Elas também têm sido grandes parceiras de cena, já que o trabalho que tenho apresentado interage muito com o público. Tenho vivido um misto de emoções, estou feliz por poder contribuir um pouco, mas também estou triste pela situação das pessoas.”

Conforme pontua Walter, a palhaçaria propõe uma relação mais direta com as pessoas, mais interativa. “O palhaço funciona muito como um espelho, mostrando que podemos ser imperfeitos, podemos cair, mas em seguida nos levantamos”, reflete. 

Vera conta que a literatura e a contação de histórias têm o poder de cura. “Agora, mais que nunca, as histórias, sejam da tradição oral, sejam literatura autoral, são bálsamo para quem recebe e para quem oferece. Dessa forma, histórias contadas, cantadas, a poesia levam em si, encantamento, alegria, esperança... Ao contar uma história, ao trazer o "Era uma vez", conseguimos "parar o tempo", levando o ouvinte a sonhar, e assim, apresentamos um novo tempo.”


“Que possamos ser a árvore de quem precisa pousar, aprendendo sempre mais sobre o amor” / Foto: Arquivo Pessoal

Independente do número de crianças e/ou adultos, a professora pontua que as apresentações têm sido muito positivas. “As que estão 'na roda' apreciam o que é ofertado. Gostam de manusear os instrumentos e objetos que levo, interagem quando surgem as cantigas, cantam junto. Saio dos abrigos com o coração quentinho, revigorada e, com a certeza de que há muito mais a fazer, a aprender. Cada vez mais estou convicta de que a literatura e a contação de histórias, através da sensibilidade, da paixão e do sonho nelas contidos possibilitam esse encontro entre o 'eu e o outro', trazendo conforto e esperança”, afirma. 

A professora cita um fragmento do poema "ÁRVORE" de Manoel de Barros.

"Um passarinho pediu a meu irmão para ser uma árvore.
meu irmão aceitou de ser a árvore daquele passarinho.
No estágio de ser essa árvore, meu irmão aprendeu de sol,
de céu e de lua mais do que na escola."

“Que possamos ser a árvore de quem precisa pousar, aprendendo sempre mais sobre o amor”, finaliza.

Ressignificando através da Sétima Arte

História sem fim, Shrek, Peter Pan, Piratas do Caribe, o Mágico de OZ, O Meu Malvado Favorito são alguns dos filmes já rodados em um abrigo no bairro Rubem Berta, zona Norte de Porto Alegre, o Centro Vida. O abrigo acolhe cerca de 700 pessoas, entre adultos, crianças e idosos, moradores de bairros como Sarandi, Anchieta e Navegantes. É ali que está organizado o rede Cine Vida.

Conforme explica a diretora da Cinemateca Capitólio e colaboradora da rede Cine Vida, Daniela Mazzilli, a ideia surgiu quando ela e sua colega Maria Angélica, coordenadora do Programa de Alfabetização Audiovisual da Cinemateca, foram se voluntariar em um dos abrigos abertos e imediatamente viram a situação e a importância de oferecer espaço e atividades lúdicas para as crianças. 

“Já no sábado (4) organizamos com pequeno grupo de voluntários para as primeiras sessões no Centro Vida (buscando dentro da coordenação equipamentos, com pessoas do setor cultural outros equipamentos etc.) e aí o coletivo de voluntários, chamado Cine Vida, em homenagem aquele espaço, se formou e mais pessoas chegaram para colaborar e multiplicar as ações em diversos espaços”, expõe.


"Para as crianças buscamos oferecer esse espaço de acolhimento, de fantasia, de sonho e de riso" / Foto: Projeto Cine Vida

De acordo com a diretora, atualmente há em torno de 40 voluntários, atuando em diversas frentes, desde projeção (com kit de projetor e som) indo aos abrigos, equipe que providencia as cópias dos filmes e liberações, pessoas que articulam nacionalmente com produtores. Voluntários que organizam logística, voluntários que oferecem carona, outros que fornecem equipamentos. “Realmente é uma rede de voluntários do setor cultural e do audiovisual que buscam da forma que podem no momento se somar e colaborar.”

Atualmente o Centro Vida, primeiro abrigo a receber a atividade, acolhe mais de 700 pessoas. Funciona em pequena sala de cinema fixa, focada no público infanto-juvenil. Foram programados até três sessões de cinema por dia (sempre à tarde e noite). Assim como outras atividades lúdicas, como oficinas, desenho no local. 

Para Daniela a arte é uma ferramenta importantíssima de acolhimento, de bem-estar e de possibilidade de atuar como agente de promoção da saúde mental de todos. “Para as crianças buscamos oferecer esse espaço de acolhimento, de fantasia, de sonho e de riso. Para mim, um dos momentos mais marcantes foi, nas primeiras sessões ouvir o riso, ouvir as crianças rindo, algo que dentro do abrigo ainda não tinha presenciado até então. Acho que o que nos move diariamente é buscar esse riso”, conclui.

Para Giordano, o cinema e a arte não são meramente um escape e sim uma forma de ressignificar o momento. “Mesmo que seja um filme que se passe num universo fantástico, ou um filme bastante distante da realidade material do espectador, ele tem essa capacidade de reorganizar uma certa humanidade, de fazer olhar o mundo com outros olhos, mesmo que de maneira quase inconsciente. Também a coletividade da experiência, é a ressignificação de memórias, é a reelaboração da realidade na qual elas se encontram através ou da fantasia ou da imaginação.”


"O cinema e a arte não são meramente um escape e sim uma forma de ressignificar o momento" / Foto: Projeto Cine Vida

Através dos abrigos que têm circulado com o projeto, prossegue Giordano, está sendo possível encontrar Porto Alegres, outros Rio Grande do Sul. "Pessoas, rostos, que normalmente não circulam pelos espaços que eu circulo. Uma tomada de consciência da geografia local, da geografia humana local. Acho que esse é um elemento que tem sido importante pra mim ter uma compreensão mais material do ecossistema no qual eu vivo. Um aspecto, por exemplo, eu não fazia ideia da quantidade de imigrantes, especialmente venezuelanos, que temos na zona Norte de Porto Alegre.”

“É uma maneira de contribuir da melhor forma como eu posso, não só eu, mas todo mundo que está junto comigo nesse projeto. São dezenas de pessoas, a maior parte delas envolvidas com cinema, com arte, com cultura, que estão conseguindo se reorganizar e oferecer os seus conhecimentos, ou as suas habilidades com crianças. Ou ainda seu conhecimento cinematográfico, seu repertório, e a sua visão de mundo. É uma consciência que, indiretamente, o cinema está construindo também”, conclui.


Edição: Katia Marko