Os números não explicam por que os impactos ambientais não são distribuídos de forma igualitária
Com um governo estadual que promoveu uma série de ajustes fiscais, autorizou o desmatamento de áreas de proteção ambiental, desmantelou a lei estadual contra os agrotóxicos, privatizou serviços públicos e adotou políticas de austeridade para sua gente, o Rio Grande do Sul está enfrentando uma crise climática sem precedentes em sua história. Precisamos refletir sobre a totalidade do problema e alimentar a memória de que as chuvas e o alagamento das cidades são consequências de uma série de causas que vêm sendo denunciadas por movimentos populares e organizações ambientais gaúchas há meio século.
Desta vez, quase a totalidade dos 497 municípios do Rio Grande do Sul foram afetados pelas inundações. Pelo menos 1,5 milhão de pessoas foram atingidas, e o retorno das chuvas torrenciais no último final de semana reforçou ainda mais este quadro. Mas esses números não explicam por que os impactos ambientais não são distribuídos de forma igualitária.
Mulheres, corpos negros, periféricos, populações em situações de rua, trabalhadores e trabalhadores desempregados, pessoas em situação de moradia precária sofrem mais com os impactos das enchentes. São sempre os mais vulneráveis que sofrem mais, e também os que são menos responsáveis pelo problema. Essa desigualdade estrutural do capitalismo, construída sobre o patriarcado e o genocídio colonial, assim como a luta de classes, é considerada na perspectiva da justiça ambiental, assim como no combate ao racismo ambiental.
O que a população gaúcha vive reflete a falência de um sistema econômico que centra seus interesses na obtenção de lucro por uma pequena parcela da população. E toda a exploração dessas riquezas é sustentada por uma intensa e desordenada extração de bens e recursos naturais. Nas últimas décadas, tal sistema destruiu exponencialmente o meio ambiente, não acompanhando os ciclos de regeneração da terra e das águas. Seguimos reproduzindo uma mentalidade de dominação da natureza, sem limites e sem harmonia com ela, como nos ensinam os povos originários. As cenas que ainda vimos na capital gaúcha, Porto Alegre, mostram que não há fronteiras para as águas e, ao mesmo tempo, que já ultrapassamos os limites de sustentação do planeta Terra para a sociedade capitalista.
Um dos resultados de transpor os limites da relação entre ser humano e natureza é a produção de toda uma espécie diferente de refugiados, os climáticos. Se muitas pessoas hoje no mundo são obrigadas a deixar sua terra natal por guerras ou em busca de melhores condições de vida, não menos crescente é o número de pessoas que migram por secas, enchentes e furacões.
A Agência de Refugiados da ONU (Acnur) aponta que 30,7 milhões de pessoas foram deslocadas até 2020 por desastres relacionados ao clima. O Banco Mundial estima que 17 milhões de pessoas na América Latina terão que abandonar suas casas por questões ambientais. O Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC) afirma que, em 2012, foram 708 mil brasileiros e brasileiras migrando em decorrência de desastres naturais. Essa realidade tem como única causa a exploração predatória da natureza, portanto, uma causa decorrente de decisão política.
Mas o que torna a tragédia climática do Rio Grande do Sul algo tão chocante e midiático não é a extensão dos estragos e o número de atingidos. O chocante é ver a força das águas retomando seu curso e invadindo também residências, bairros e municípios que, pela lei do capital financeiro, deveriam estar a salvo dos dissabores reservados apenas às classes subalternas. A perplexidade do desastre é a constatação por parte da pequena, média e grande burguesia de que, por mais esforço que se faça para ignorar a emergência climática, ela não desaparecerá.
Embora hoje o sofrimento esteja atingindo desproporcionalmente comunidades atravessadas por marcadores de classe, gênero e raça, o desastre no Rio Grande do Sul anuncia um futuro devastador para a sociedade como um todo, com cidades inteiras perdidas e mais de 230 mil refugiados climáticos que já não poderão voltar para suas casas. Isso nos exige identificar quem são os responsáveis, porque os negócios de sempre (ou o cenário “business as usual”) não poderão dar respostas justas, democráticas e solidárias em grande escala, como se requer. A lista é longa e histórica, é preciso cobrar a dívida climática e mudar o sistema capitalista. Devemos começar pelos mais próximos e diretamente envolvidos nestas crises, a urgência tem classe, a classe trabalhadora e os povos.
Eduardo Leite (PSDB), atual governador do estado do Rio Grande do Sul, ainda em 2019, destruiu a iniciativa do Código Ambiental Estadual, técnica e democraticamente gestada há nove anos por meio de debates, audiências públicas e aperfeiçoamentos diversos. O texto original do código, de 2000, contou com a contribuição e mobilização de organizações ecológicas pioneiras do estado e do Brasil, como a Agapan e a Amigas da Terra.
As propostas mais relevantes para o enfrentamento da crise climática foram completamente destruídas por iniciativa do governo dele, que alterou pelo menos 480 temas centrais. Fiel à racionalidade corporativa e empresarial, Leite fez de tudo para que exigências vitais fossem flexibilizadas a fim de facilitar o licenciamento ambiental aos megaempresários. E quando a água da emergência climática "bateu na bunda", agradeceu a solidariedade a Elon Musk e ao empresariado pela “ajuda humanitária S.A.”.
Já em Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo (MDB), sucessor do também direitoso Nelson Marchezan Jr., que lhe deixou como legado a extinção do Departamento Municipal de Esgotos Pluviais (DEP), passou pelas enchentes de 2023 e, agora em 2024, com 19 das 23 bombas dos sistemas de contenção de cheias desligadas. Despreparo, precarização e falta d'água são marca da sua gestão. Distante do caos, os fascistas pedem que não se politize o debate climático, e Melo manda os ricos da capital irem para suas casas na praia.
Estamos em ano de eleição municipal em todo o Brasil, cerca de 130 municípios dos 441 atingidos pelo desastre climático que se abate sobre o Rio Grande do Sul, listados até o dia 13 de maio, havia solicitado auxílio emergencial do governo federal, disponível para compra de água, combustível, itens para cozinhas comunitárias, equipagem de abrigos, entre outros. Só podem ser por razões políticas, pois as razões humanitárias não os movem. Mesmo assim, a mídia corporativa divulga pesquisa de percepção de responsabilidade e resposta dos governos federal, estadual e municipais sobre a tragédia, revelando apoio aos prefeitos bolsonaristas que vendem as cidades ao empresariado.
O governo federal cedeu policiais da Força Nacional e contingente do Exército para ajudar nos resgates e na manutenção da segurança. Também criou uma força-tarefa, com a participação de vários ministérios, órgãos públicos e Exército, para restabelecer vias de acesso a cidades ilhadas e refazer estradas, retomar voos comerciais utilizando a Base Aérea da cidade de Canoas e outros aeroportos do interior gaúcho, ajudar na limpeza e na reconstrução de municípios, bem como abordar outros aspectos da crise, como a educação e, especialmente, a saúde.
No dia 9 de maio, o governo federal editou uma medida provisória (MP 1216/24) que prevê 12 iniciativas, entre elas antecipação de benefícios sociais; desconto nos juros em programas de apoio e de financiamento a microempresários individuais (MEIs), pequenas e médias empresas, à agricultura familiar e ao agronegócio; e R$ 200 milhões para financiamento pelos bancos públicos de projetos de reconstrução da infraestrutura e para reequilíbrio das empresas.
Nesta semana, o governo Lula anunciou a suspensão do pagamento da dívida do Rio Grande do Sul com a União por 3 anos, medida aprovada pelo Congresso Nacional; instituiu o Auxílio Reconstrução, no valor de R$ 5,1 mil, a ser pago a todas as famílias cujas casas foram afetadas pela catástrofe e que serão somados aos R$ 2,5 mil anunciados pelo governador Leite, totalizando mais de R$ 7 mil às famílias atingidas; também está disponível o Saque Calamidade do FGTS, no valor de R$ 6.220,00. Mais medidas devem ser anunciadas em relação à habitação popular e ao crédito para empresas.
O governador Eduardo Leite estima que a reconstrução do estado custe R$ 19 bilhões, mas há quem calcule que seja bem mais. Muitos daqueles que hoje choram diante do desastre gaúcho, são os mesmos que alimentam a racionalidade predatória que está na base do que está acontecendo no Rio Grande do Sul. O agronegócio e sua bancada, as corporações transnacionais que invadem e espoliam os países, a especulação imobiliária, a desregulamentação ambiental e o negacionismo científico, tudo isso serve de ingrediente para o que está acontecendo. E não são as lágrimas de crocodilo que poderão reverter esse cenário. Não são as falsas soluções vendidas pelo capital que poderão solucionar a crise que esses mesmos agentes estão causando.
Apesar disso tudo, quanto maior é a dimensão da catástrofe, maior são as demonstrações de solidariedade vindas de baixo. Elas abrem caminho para as verdadeiras soluções. Em situações extremas fica visível a impotência do Estado, capturado pelas corporações, e a potência das comunidades, grupos e coletivos organizados em movimentos populares. Essa força da solidariedade de classe é vital e precisa ser reconhecida, potencializada e estimulada a se perpetuar para além de situações pontuais de crise e construir poder popular capaz de mudar o sistema. A gestação de um novo mundo começa pela superação dos motivos determinantes da emergência climática e o reconhecimento de que a solução não virá dos de cima.
Tudo que nós tem é nós!
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko