O Estado está sucateado. Ele não atende às pessoas nos abrigos-escola, seja para emissão de documentos físicos ou para registro em cadastros de qualquer tipo. Por uma ação coletiva voluntária, reunimos dados sobre o acesso digital do cidadão, especialmente com a finalidade de oferecer ajuda individual no uso dos aplicativos governamentais voltados à obtenção e à recuperação de documentos e benefícios, como o Cadastro Único (CadÚnico). A coleta de informações segue em andamento desde 8 de maio.
Nosso formulário foi inspecionado e aprovado pela Defensoria Pública da União (DPU), que verificou que não lidamos com dados sensíveis da população em nossa pesquisa. Também foi aprovada a realização e a aplicação conjunta da Cartilha de Direitos dos Cidadãos Afetados pelas Enchentes no Rio Grande do Sul, desenvolvida pela Persepolis Escola Livre (@persepolisescola).
A respeito da situação no estado, a Secretaria do Desenvolvimento Social divulgou um mapeamento dos abrigos com dados coletados até 9 de maio e, em seguida, no dia 16, lançou um aplicativo. Ou seja, os dados não são confiáveis. Abrigos temporários registrados hoje, que em sua maioria são casas de outras famílias sem acesso à internet, ainda enfrentam falta de água potável, especialmente na periferia de Porto Alegre.
Segundo funcionários do estado com atuação in loco, segue em curso uma análise das estruturas dos abrigos reconhecidos, com o objetivo de planejar a realocação das pessoas acolhidas para abrigos permanentes. No entanto, a maior parte dos atingidos não se encontra em abrigos públicos, muito menos em escolas.
Percebe-se ainda que a prefeitura da capital se omite no suporte aos abrigos oficiais. Sem atendimentos pelos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) no dia a dia, a mão de obra e o trabalho de coordenação é conduzido, muitas vezes, por serviços de empresas terceirizadas contratadas pelo município, o que aumenta a dificuldade de pessoas que são de outros municípios conseguirem acesso aos documentos e aos benefícios.
Atualmente, muitos dos abrigos cadastrados estão em entidades privadas e igrejas evangélicas, que não deram acesso para a realização do levantamento. Além disso, as realocações em andamento fazem com que os dados coletados já não reflitam a realidade em tempo real. Desse modo, a função do aplicativo, de unir abrigos e doações, não terá êxito, pois as doações chegam ao estado, mas não aos abrigos reais, onde se encontram a maioria das pessoas que necessitam de auxílio.
Levantamos, desde o dia 10 de maio, o que está acontecendo em abrigos nas zonas Leste, Norte e Sul, com várias demandas registradas. Além disso, seguimos colhendo denúncias sobre violações de direitos humanos e de crimes ambientais, as quais contam com a defesa de grupos e organizações do Estado. Posicionamos-nos contra a gentrificação programada de pessoas que, segundo o próprio prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, não deveriam estar onde estão.
Sem contar o fato de que as secretarias de Educação estão se organizando para retomar o ano escolar já nesta segunda-feira, dia 20 de maio, agravando o problema dos abrigos em escolas. Ao todo, são 15 abrigos em instituições públicas e privadas.
As escolas privadas são minoria, e já estão realocando as pessoas desabrigadas sob sua responsabilidade para prédios públicos antes abandonados, sem qualquer estrutura de alojamento e banheiros ou de recursos humanos. Esses abrigos escolares privados usaram recursos próprios e temem por sua imagem ante a sua clientela, tanto em relação ao recomeço das aulas, quanto na dignidade do encaminhamento de seus “hóspedes”.
Já as escolas públicas lutam com seus professores para manter as pessoas abrigadas, apoiando, inclusive, muitos profissionais da própria escola que também estão desalojados. Para os professores, há apenas a possibilidade do voluntariado, sem o recebimento de horas extras. Trazem sua dignidade e defesa pela educação e apoio mútuo, abrigando quem precisa e quem quer ajudar, lutando com poucos recursos para evitar o pânico do desalojo e a revitimização das pessoas desabrigadas. Além disso, lutam para que se estenda a suspensão do calendário escolar diante do cenário de catástrofe.
Denunciam também as graves violações de direitos humanos, dos mandos e desmandos do Estado, que se omite e não faz mais do que enviar diariamente policiais militares aos abrigos, mais uma vez criminalizando a pobreza, atrelando esse processo à assistência estatal e à desinformação, deixando a população abrigada sem acesso a aparelhos eletrônicos de qualquer tipo, sem rádio, sem televisão, sem celulares, sem computadores.
Com a grave demanda e violação de direitos, a Persepolis Escola Livre, startup de tecnologia voltada para geração de impacto social via tecnologia na periferia da Capital desde 2018, vem assistindo abrigos em territórios periféricos da cidade com doações de eletrônicos, campanhas para doação de hardware e celulares e promoção do acesso digital cidadão. Diante das circunstâncias atuais, a iniciativa se encontra fisicamente na Rua Ernestina Amaro Torrely, número 100, no Complexo da Bom Jesus, zona leste. Assim, buscamos agir como ponte de conexão real entre territórios que absorvem as pessoas sem moradia, em ação direta e sem algoritmos, feita por pessoas reais e na luta por direitos.
Nesse cenário, recebemos vários anúncios governamentais que confundem e apaziguam as violações de direitos humanos em andamento. A política celebra e infla auxílios, mas eles não chegam aos abrigos. Tomamos como exemplo o anúncio recente da liberação do auxílio Bolsa Família pelo governo federal: só em junho será a nova inclusão ao programa.
Para recebimento dos valores de quem já é beneficiário, mas não possui os documentos físicos, nem acesso digital ou por cartão da Caixa Econômica Federal (CEF), é necessária uma certidão emitida pela prefeitura para o acesso bancário. Ou seja, não se considera que há uma carência de serviços bancários na cidade, com poucas agências, poucos caixas eletrônicos, para além dos 24h, os quais já existem em quantidade reduzida e sem dinheiro para saque.
Nas orientações divulgadas pela prefeitura aos Cras, as pessoas que têm conta na Caixa precisam buscar a emissão de um novo documento com foto, para depois procurar o atendimento no banco. E para as pessoas que têm direito a benefícios sem conta bancária, orienta-se que procurem a gestão do Bolsa Família do município para que seja emitida uma Declaração Especial de Pagamento (DEP). Com a DEP, a pessoa deve procurar um caminhão ou agência da Caixa para só então receber.
Anunciam ainda que a Polícia Civil e os Cartórios estão participando de um mutirão para emissão de novos documentos. A prefeitura também lançou um canal de WhatsApp para cadastro. Perante o exposto, já dá para ver o tamanho da falha governamental de cima a baixo. Os benefícios não chegarão antes de setembro às pessoas desabrigadas, nem às suas casas, ou mesmo ao aeroporto da capital. Reiteramos nossa denúncia à evidente e costumeira indiferença aos de baixo.
Até o momento, nosso levantamento constatou que 90% das pessoas atingidas pelas enchentes estão fora de casa, em abrigos não oficializados, localizados na periferia da cidade. Mais de um terço dos abrigos foram esvaziados, e as pessoas abrigadas estão sendo avisadas de saídas programadas desde o dia 10 de maio. Novas realocações forçadas de pessoas sem documentação e sem acesso a direitos ocorrem pela cidade.
Programadas no conluio entre governo, estado e capital, essas situações criam cortinas de fumaça para apanhar recursos nacionais e internacionais direcionados ao desastre, com promessas de benefícios que novamente estarão ao alcance de poucos. As pessoas desabrigadas seguem sem acesso à informação, o que viola o direito fundamental à dignidade. Governos se reúnem a portas fechadas em prédios equipados em lugares secos para programar a cidade nova como modelo de inovação social. Mas para quem? Para os algoritmos de faturamentos bilionários em blockchain? Precisamos mais do que nunca de apoio humanitário, pois o desastre veio programado desde longe.
*Stéphani Fleck da Rosa é atuante em advocacia popular desde 2011 e defensora de ocupações e coletivos anarcafeministas. Realizou pesquisa empírica durante doutorado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul sobre a experiência do 8 de março de 2022. É pós-doutorande Fadisp.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko