Não há, efetivamente, tanto capital para que todos ganhem
“Em juízo estão seus feitos, não o sofrimento dos judeus, nem o povo alemão, nem a humanidade, nem mesmo o antissemitismo ou o racismo”.
No livro Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt, de forma premonitória, já alertava que o caminho percorrido pelos Estados dominantes do pós-guerra, para construir uma “história da tragédia”, flertava perigosamente com os próprios autores da calamidade e com a conservação de suas razões e seus motivos.
A história narrada e a história construída foram se distanciando de maio de 1945 para este maio de 2024. Em uma luta entre a identificação das causas da grande tragédia e a explicação que permitisse a acomodação - com o objetivo de erguer a nova ordem capitalista, sob hegemonia do capital financeiro - pelo ofício do pragmatismo e do realismo político, venceu a segunda.
Nessas quase oito décadas que separam a derrocada do nazifascismo na Europa e a atualidade, se mantiveram abertas frestas por onde pôde se movimentar e recriar o novo reacionarismo fascista, o qual assombra o mundo dos defensores das utopias igualitaristas. Não mais frontalmente antiliberal como há um século, o novo reacionarismo, ao contrário, recria sua identidade xenófoba, machista, tradicionalista, antimodernista, antipacifista, anti-iluminista, se aproximando do neoliberalismo, exatamente através dos aspectos iliberais do neoliberalismo. Justamente, o modelo capitalista vitorioso após tantas crises mundiais.
A radicalização da espoliação sobre os povos e as nações, promovida pelo neoliberalismo, suplicou por um protagonista - um “partido orgânico” - que se dispusesse a ser suficientemente virulento contra a modernidade e seus avanços civilizatórios. A expansão de direitos que a luta dos trabalhadores e os movimentos sociais produziram, se chocou, na crise, com a necessidade da manutenção dos ganhos das elites rentistas. Não há, efetivamente, tanto capital para que todos ganhem. Frente a isso o neoliberalismo tratou de destruir os mecanismos de transferência de capital para as grandes massas empobrecidas e garantir “o seu”. Nada mais oportuno que a emergência de uma nova extrema-direita para fazer o que o centro liberal-democrático ou a social-democracia não tinham capacidade política de fazer.
Neste 19 de maio de 2024, as forças de extrema-direita e neofascistas europeias, com suas ramificações internacionais, se reuniram na cidade de Madri. Sob a insígnia Europa Viva 24 - um sofisma absurdo - os defensores do ódio, da segregação social e descendentes da morte, se reuniram para “turbinar” sua campanha eleitoral para o Parlamento Europeu. Eleições que ocorrerão entre 6 e 9 de junho.
Em uma espécie de encontro mórbido entre A Família Adams e Os Monstros, porém sem graça, arte ou esperança, participaram líderes de partidos reacionários, como Santiago Abascal, André Ventura, Mateusz Morawiecki, Giorgia Meloni, Marine Le Pen e Viktor Orbán. O chefe de Estado argentino, Javier Milei, também participou.
Exatamente em um cenário de crises estruturais do modo de produção e de cataclismas por ele potencializado, a extrema-direita mais se fortalece e se movimenta ofensivamente. As explicações fáceis, a narrativa autoindulgente, a construção do inimigo no outro, a defesa do passado recontado, o ideal supremacista, todos estes elementos virulenta e anarquicamente difundidos nas redes digitais - e sua aliança com frações das elites muito poderosas e ricas - tornam a extrema-direita uma opção palpável para setores empobrecidos cada vez mais confusos sobre a extensão e a profundidade da crise.
Não é um inimigo civilizatório a ser menosprezado. Suas políticas podem agravar a destruição do planeta e da humanidade. Suas respostas significam um aumento da velocidade em direção ao empobrecimento profundo e à destruição ambiental. Não pensem que a extrema-direita é um conjunto de voluntariosos equivocados. São racionais defensores da destruição como estratégia. O programa democrático e a utopia igualitarista - dos trabalhadores e movimentos sociais - devem ser destruídos para a implantação de um mundo de segregação econômica, étnica e religiosa. De um governo dos ricos e da religião.
Como diz Umberto Eco: “Seria muito confortável para nós que alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: ‘quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas’. Infelizmente a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo (termo que Eco usa para identificar as novas formas do fascismo) pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko