Rio Grande do Sul

SOLIDARIEDADE

Com o Rio Grande do Sul

'Já somos sobreviventes, como disse José Saramago, e agora resta-nos encontrar maneiras de salvar-nos todos'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Fundação José Saramago doa os direitos de autor do Prêmio Nobel, do primeiro semestre de 2024, para a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida que está atendendo os afetados no RS - Reprodução Facebook

A primeira vez que José Saramago esteve no Rio Grande do Sul foi em 1989 para participar em Porto Alegre num congresso sobre cultura e apresentar o seu romance História do Cerco de Lisboa. Da última vez que a Fundação José Saramago esteve na capital gaúcha foi em 2019, para uma exposição que homenageava o Prêmio Nobel de Literatura.

Entre essas três décadas, foram vários momentos marcantes na vida do autor de Ensaio sobre a Cegueira os passados em terras gaúchas, como a participação no Fórum Social Mundial, em 2005, ao lado do amigo Eduardo Galeano, numa conversa para uma plateia de vários milhares de pessoas, e a atribuição do Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), em 1999.

Naquele dia 26 de Abril, na Aula Magna da universidade, depois de ler o discurso que havia escrito, José Saramago passou a falar de improviso. “A Declaração de Direitos Humanos é uma promessa que ninguém se mostra disposto a cumprir. Talvez porque o simples dever de os respeitar e fazer respeitar não tenha posto ainda no nosso espírito a ideia de que, de um ponto de vista ético, tanto valor terá o dever de um direito como o direito a um dever. Talvez valha a pena pensar nisto”, disse. E prosseguiu: “Em palavras mais diretas, para terminar: reivindiquemos os nossos direitos, sim senhor, reivindiquemo-los todos os dias, aqui e onde quer que seja, mas reivindiquemos também, para os assumir completamente, os nossos deveres.”

Quando criou a fundação que leva o seu nome, em 2007, José Saramago disse que ela não nascia para contemplar o seu próprio umbigo, senão para intervir na sociedade. E deixou-nos uma declaração de princípios onde diz que a FJS nasce para defender a literatura e a cultura em língua portuguesa, os direitos humanos e o ambiente.

Em 2010, quando o Haiti foi arrasado por um forte tremor de terra, foi decidido fazer-se uma edição especial do romance A Jangada de Pedra, de José Saramago, e reverter o valor arrecadado com a venda dos livros para ajudar na reconstrução do país. Em 2019, a Fundação José Saramago e a Porto Editora fizeram uma edição especial de O Conto da Ilha Desconhecida para angariar fundos para o trabalho da Cruz Vermelha em Moçambique, país que tinha sido afetado pelo Ciclone Idai.

Quando nos chegaram as notícias do que se passava no Sul do Brasil, nós pensamos em como poderíamos ajudar. Entramos em contato com a Companhia das Letras, editora que publica a obra de José Saramago no Brasil, e encontramos uma forma de colaborar nesse difícil momento, doando os direitos de autor do Prêmio Nobel português, do primeiro semestre de 2024, para uma instituição que está a trabalhar no terreno auxiliando os afetados. O valor será destinado à Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida.


Divulgação

Na sua fala na Aula Magna da Ufrgs, em 1999, José Saramago contou que havia sido convidado para participar num encontro para debater propostas para o novo milênio que se avizinhava. Enquanto sociólogos e filósofos presentes na reunião puseram-se a imaginar o futuro, ele, um ficcionista, optou por apresentar ideias para o dia seguinte e uma delas era a de que deveríamos passar a viver como sobreviventes.

“O que costumamos chamar sobrevivente é aquele que passou por um grande perigo, um terremoto, uma inundação, um naufrágio, um incêndio, um acidente, uma doença grave, e teve a sorte de escapar. Pelo facto de haver sobrevivido talvez passe a compreender melhor a importância, o valor e o significado de estar vivo.” E continua: “Ora, olhando agora para nós todos, penso que se não começarmos a viver desde já como sobreviventes lúcidos e conscientes, amanhã poderá ser tarde demais. Quando os crimes contra o planeta em que vivemos se tornarem irreversíveis, quando o lixo invadir as casas, quando a poluição fizer da atmosfera um tóxico, quando a destruição das florestas tornar o mundo num deserto, quando os rios e os mares se transformarem em cloacas fétidas, os sobreviventes não sobreviverão. Salvo se, entretanto, encontrarem por aí outro planeta onde viver e já estiverem a cometer nele as mesmas atrocidades que temos andado a cometer neste...”

Não foram só pelos laços de carinho que unem a Fundação José Saramago com o Brasil o motivo que nos fizeram ajudar o povo gaúcho. Foi também porque entendemos que o nosso futuro passa, em boa medida, pela forma como conseguiremos, todos nós, como humanidade, enfrentar dificuldades como essas e encontrar soluções para um problema que foi criado por nós seres humanos. Já somos sobreviventes, como disse José Saramago em Porto Alegre, e agora resta-nos encontrar maneiras de salvar-nos todos. E é por isso que estamos com o Rio Grande do Sul.

* Ricardo Viel, diretor de comunicação da Fundação José Saramago.

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko