Haitianos, senegaleses e venezuelanos que imigraram para o Rio Grande do Sul em razão das crises avassaladoras que atingiram os seus países – terremoto, fome crítica e miséria absoluta – enfrentam a segunda tragédia em suas vidas. O Estado abrigou nos últimos anos 22 mil venezuelanos, 12 mil haitianos e 2.500 senegaleses. Do total de estrangeiros que vieram para cá, a maioria se espalhou por vários municípios, mas cerca de 5.000 ficaram na Capital. Muitos deles, agora, com as enchentes, estão em situação lamentável, encarando fome, frio, água por todos os lados e também racismo e xenofobia, conforme relataram para as autoridades.
"Minha sensação é de que estamos revivendo a mesma situação de 2010, no terremoto que arrasou o nosso país." Assim a presidente da Associação dos Haitianos no Brasil, Anne Milceus Bruneau, define o sentimento das famílias da comunidade afetada pelas enchentes. "Esta catástrofe climática fez a gente reviver o trauma e todas as dores de 14 anos atrás." Ela conta que a vida dos imigrantes é dura. "Trabalhamos todos os dias, raros são os momentos de folga. Preconceito é grande, não dá para aguentar tanta sordidez e crueldade humana", afirmou.
Anne relata que haitianos atingidos pelas águas estão abrigados no Vida Centro Humanístico, na região Norte da Capital. São cerca de 600 famílias, entre elas muitas venezuelanas. As doações estão chegando ao local, não tem faltado nada. Colchões, comida, água, cobertas são doadas. A solidariedade está chegando e não há queixas. Mas, como qualquer ser humano, eles também pensam no dia seguinte. Há temor de que sejam esquecidos tão logo a vida volte ao normal.
Segregados e com pouca interação com a população brasileira, a associação haitiana espera que, a partir deste momento, os seus compatriotas sejam mais bem aceitos pelos gaúchos. Neste caos em que se encontram e diante da tragédia geral que afeta os gaúchos foi cancelada a Festa da Bandeira do Haiti no dia 18 de maio. "Era o nosso momento mais bonito. Relembrávamos as tradições, a gastronomia, a música e falávamos na nossa língua."
O Alto Comissariado das Nações para Refugiados (ACNUR) informa que está atuante e fortalecendo os esforços de coordenação com parceiros locais para dar assistência às comunidades de refugiados. "Todas as regiões do mundo estão sujeitas aos impactos da mudança do clima, seja de forma direta ou indireta, e não podemos deixar para trás as pessoas forçadas a se deslocar devido a fatores climáticos e ambientais.”
O Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações, localizado no Bairro Floresta de Porto Alegre, está abrigando 200 refugiados. Todos moravam em regiões baixas da Capital e foram atingidos fortemente, perdendo o pouco que tinham. Estão por lá hoje 200 pessoas de várias nacionalidades, informa o padre italiano Ademar Barilli, de 67 anos, há três décadas na América Latina, sempre cuidando de pessoas atingidas por alguma tragédia ou que vivem em extrema pobreza. "Eles não contam com estrutura familiar próxima, e a maioria não está incluída na rede de assistência social pública. Ser refugiado em dobro será ainda mais complicado para quem já vive muitas privações", afirma o religioso.
As ligações para o centro não param. Um grupo de 140 refugiados haitianos e venezuelanos pedindo ajuda denunciou ter sido preterido na distribuição de água e apartado das outras pessoas, em outro abrigo, mas não houve confirmação do fato pelas autoridades da Defesa Civil. "Não há falta de água e nem discriminação com quem quer que seja", disse um agente.
Os imigrantes estão tranquilos no local, mas como tantos outros receiam voltar para casa e não encontrar mais nada. As águas estão contaminadas, há risco de sérias doenças, não sabem onde vão morar. Joeph Tougba, que vende mercadorias chinesas na esquina da 24 de Outubro com Coronel Bordini, no Bairro Auxiliadora, diz que está bem no Brasil, que é vítima das enchentes, mas está bem acolhido no Ítalo-Brasileiro. "As ofertas de trabalho no Rio Grande do Sul existem, mas a burocracia atrapalha. É muito mais complicado revalidar diplomar e conseguir se documentar. Eu sou professor", diz, sonhando com um futuro melhor.
Edição: Katia Marko