Este modelo de desenvolvimento se baseia na guerra contra a natureza
Está clara a situação. Este modelo de desenvolvimento, que se baseia na guerra contra a natureza, nos empurrou para uma condição de crises interligadas e sem precedentes. No limite, está o caos. A barbárie. Na situação particular do Rio Grande do Sul, isto já se expressa até pelo que não se vê, no rosto de todos. Os sorrisos simplesmente desapareceram, e as recomendações discretas são para que as pessoas não saiam à noite, nem andem sozinhas pelas ruas da capital.
É uma realidade que precisa ser reconhecida e compreendida. Não se trata apenas de esperar auxilio e evitar riscos, hoje, ou de torcer para que, no futuro, não sejam eleitos representantes públicos oportunistas e irresponsáveis como estes que alimentaram o que estamos vivendo. Ok, tudo isso é muito importante, mas não basta. Precisamos ficar atentos diante da possibilidade de que, após esta crise, para fugir de responsabilidades que são próprias aos adultos, muitos se deixem capturar pelo discurso das soluções fáceis, patrocinadas pela violência, e isso acabe abrindo maiores espaços para o avanço de aventuras como aquelas que redundaram nos golpes anteriores (de 1964 e 2016) e no bolsonarismo que serpenteia entre nós.
Há um caldo de cultura favorável a isso, que se nota na multiplicação de políticos e formadores de opinião ostensivamente comprometidos com a negação da ciência, da história, da geografia e do humanismo. Nessa situação, e diante da tristeza que paira sobre o RS, é possível supor que o cheiro da água podre carregue sinais de uma degradação mais profunda, de dimensão ainda por ser revelada. Se isso é verdade, suas consequências dependerão do realismo com que nossa sociedade venha a encarar o fato de que, mais do que apenas vitimas, somos e seremos corresponsáveis pelo que ainda está por acontecer.
As análises das enchentes servem, inclusive, como metáfora para isso. Elas nos mostram que tudo se conecta e que não há efeito sem causa. A água que está sobrando por aqui é a mesma que está faltando lá e acolá. Com isso, nossos flagelados da enchente se somam aos afetados pelo drama dos rios que desaparecem na Amazônia e aos migrantes de áreas desertificadas que se estendem com o aquecimento global, ampliando o sofrimento e o potencial de revolta entre milhões de desvalidos. Por quanto tempo eles suportarão a miséria a que são destinados e que cresce com o acúmulo de riquezas nas mãos de tão poucos? Como serão contidos quando se revoltarem? E de onde isso vem?
Obviamente, as raízes estão num modelo de desenvolvimento negativo, responsável pela expansão das desigualdades e pela degradação das condições de equilíbrio ambiental. A queima de combustíveis fósseis acelera o desfazimento das calotas polares, ampliando o volume das chuvas. O desmonte de legislações protetivas ao ecossistema e o estímulo à expansão de monocultivos dependentes de agrotóxicos destroem a microvida dos solos e reduzem sua capacidade de absorção, acelerando a velocidade de escorrimento das águas.
A drenagem dos banhados e o assoreamento dos rios potencializam o poder destrutivo das enchentes, dando concretude ao que estamos vivendo. Tudo isso resulta de sistemas de produção e consumo inviáveis, porque injustos e criminosamente insustentáveis. São eles que produzem o negacionismo cientifico e a construção planejada da ignorância e da apatia sociais. Isto é assim porque a concentração de poder e riquezas, ao mesmo tempo em que aprofunda as iniquidades, captura governadores, prefeitos, deputados e vereadores, esvaziando de conteúdo a democracia representativa.
Por isso, para evitar que os sofrimentos deste período se repitam no futuro, precisamos pensar no que está por vir e no que faremos assim que as águas baixarem.
Afinal, nesta hora, e por algum motivo que nos há de afetar, ao mesmo tempo em que tramita no Congresso Nacional mais um “pacote da destruição”, não apenas as grandes mídias tratam de ocultar o anúncio de 1,1 bilhão de dólares destinados pelos Brics ao RS, por iniciativa da ex-presidente Dilma Rousseff, como muitos agentes do caos estarão lidando para se apropriar de vantagens ligadas à reconstrução de tudo que foi destruído pela ação ou omissão do capitalismo predatório.
E é esta a pergunta básica deste texto: os recursos, as obras, as atividades e a energia necessários para a reconstrução das estruturas físicas arrasadas servirão como mais um instrumento para enriquecer oportunistas, amortizar consciências e alimentar clientelismos? Ou serão aproveitados como mecanismos direcionados à organização, mobilização, energização e recuperação da autoestima, da alegria e da integridade emocional dos gaúchos?
Para que a definição nos seja favorável, precisamos ser protagonistas ativos do que virá. Em outras palavras, nosso futuro dependerá do grau de participação social envolvida no planejamento, execução e monitoramento das obras de recuperação do RS. Não se trata apenas do dinheiro, do uso e controle dos recursos generosamente destinados ao Sul. Estarão em jogo a democracia participativa e os aprendizados coletivos referentes a nexos de interdependência que, em sendo ativados, seguramente responderão de forma positiva.
Confiamos na sensibilidade do presidente Lula e no empenho do ministro Paulo Pimenta, para que não ocorram desvios e para que, desde agora, sejam assegurados espaços à intervenção direta de entidades, organizações e indivíduos tão respeitosos em relação à natureza como conscientes de que somos todos parentes, filhos, pais e irmãos dos necessitados.
Do governador Leite, do prefeito Mello, do senador Mourão e seus assemelhados, farelos do mesmo saco, esperamos apenas que não atrapalhem.
Uma música? Xangai - Matança.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas