Rio Grande do Sul

Coluna

Cuidado em liberdade: tensões e rupturas de uma política antimanicomial no Judiciário brasileiro

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Instituto Psiquiátrico Forense Doutor Maurício Cardoso, em Porto Alegre (RS) - Luiz Silveira/Ag.CNJ
A Política Antimanicomial busca romper com um modelo arcaico de tratamento centrado em instituições

No dia 18 de maio, celebramos o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, uma data de referência histórica que evoca a memória brasileira para jamais esquecermos das batalhas travadas pelo fim das práticas e discursos manicomiais que ainda permeiam o espaço social e, especialmente, o campo da saúde em nosso país. Esta luta dá-se a partir de várias formas de mobilização, protagonizadas por uma multiplicidade de atores e repertórios de ação coletiva, resultando em mudanças estruturais, institucionais, ainda em curso.

A trajetória percorrida no transcurso da formação do Movimento Antimanicomial teve considerável vitória com a publicação da Lei da Reforma Psiquiátrica ou Lei Antimanicomial, em 2001. Normativa que, após 23 anos, tem sua eficácia posta em debate por intermédio de ato do Conselho Nacional de Justiça, a Resolução n° 487/23, que não inova, mas reúne uma série de normativas internacionais e nacionais que ancoram a previsão do fechamento dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, os manicômios judiciários, espaços asilares de exclusão social e sofrimento.

Assim, entre os desafios que enfrentamos atualmente, deparamo-nos com a mudança nas formas de cumprimento de medidas de segurança aplicadas às pessoas consideradas inimputáveis, incapazes de discernir no momento do cometimento de atos tipificados como crimes.

Essas mudanças têm efeitos, principalmente, nas práticas estabelecidas no Judiciário e na saúde. Logo, deve-se reconhecer que o Movimento Antimanicomial enfrentou desafios ao incluir as pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei no debate sobre a (des)institucionalização manicomial. 

São obstáculos históricos – políticos e jurídicos – relacionados aos manicômios judiciários. São duas décadas de uma Reforma que redirecionou o cuidado em saúde mental ao regulamentar as formas de tratamento para pessoas com transtornos mentais, contudo, sem tratar especificamente daquelas em conflito com a lei.

Há, portanto, com a instituição da Política Antimanicomial do Poder Judiciário pelo Conselho Nacional de Justiça, uma oportunidade histórica para a execução de ações de atenção e cuidado em saúde mental e desinstitucionalização, para efetivar, combatendo o preconceito, a política de atenção integral às pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial apresentadas ao Sistema de Justiça Criminal, garantidora do cuidado extramuros, de base comunitária. 

A retomada da temática pelo Poder Judiciário não traz inovações para o Sistema Único de Saúde e para a luta antimanicomial, apenas sintetiza ao Sistema de Justiça Criminal suas responsabilidades no processo de implementação da Reforma Psiquiátrica e da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência  e dá um prazo para o fechamento dos manicômios judiciários.

A premissa continua sendo a mesma, é a de que as formas primárias de tratamento sejam fora de instituições hospitalares e asilares, com o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial e seus componentes, como os Centros de Atenção Psicossocial e Serviços Residências Terapêuticos, com apoio familiar e comunitário.

No âmbito do SUS, o ano de 2014 foi primordial para o avanço do cuidado em saúde mental nos espaços de privação de liberdade.

Houve a instituição da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP), para ampliar as ações de saúde para a população privada de liberdade,  o que permitiu que cada serviço de saúde prisional passasse a ser visualizado como ponto de atenção da Rede de Atenção à Saúde.

Também nesse período, como parte da estratégia para redirecionamento dos modelos de atenção à pessoa com transtorno mental, vinculado à PNAISP, foi instituído o serviço de avaliação e acompanhamento de medidas terapêuticas aplicáveis à pessoa com transtorno mental em conflito com a Lei. 

Esse serviço, segundo as orientações do Ministério da Saúde, é composto pela Equipe de Avaliação e Acompanhamento das Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei - EAP, com a função de acompanhar o processo criminal até sua conclusão, atuando como elo entre a Justiça Criminal, a Rede de Atenção Psicossocial e o Sistema Único de Assistência Social e outras políticas públicas no acompanhamento das medidas de segurança, produzindo mudanças significativas nos estados.

O Rio Grande do Sul, mesmo após dez anos, ainda não possui essa equipe implementada, fator que dificulta a implementação e a efetividade da Política Antimanicomial. Os estados recebem cofinanciamento do Ministério da Saúde para a instituição dessas equipes, o que não desonera os governos estaduais de instituir equipes próprias, urgentes para o cuidado em saúde mental.

Portanto, há um lento movimento, o qual resiste e insiste para que a abordagem da saúde mental cumpra com a alteração de um modelo arcaico de tratamento centrado em instituições psiquiátricas por outro com abordagens mais humanizadas e inclusivas, que considere a participação social e o respeito à dignidade da pessoa em sofrimento psíquico que de priorize o cuidado em meio comunitário e respeite a autonomia de todos os indivíduos, incluindo os que possuem questões com o Sistema de Justiça Criminal.

Contudo, reitera-se serem muitas e históricas as dificuldades para a consolidação do SUS e de seus componentes, pois, ao mesmo tempo que se quer sua efetividade, vivenciamos a persistência no investimento da privatização do cuidado de saúde em geral, e especialmente da saúde mental através das Comunidades Terapêuticas e Fazendas Terapêuticas, as quais receberam financiamentos públicos em detrimento do SUS e SUAS. 

Hoje, com o Rio Grande do Sul assolado pelo resultado de gestões governamentais que ignoram a crise climática, tal qual ignoram a abordagem desatualizada da institucionalização asilar que são o resultado de uma perspectivas ultrapassadas para o cuidado em saúde mental, é preciso fortalecer os defensores e defensoras de Direitos Humanos nas mais diversas frentes. Precisamos nos fortalecer para batalhar pela Rede de Atenção Psicossocial e seus equipamentos, de forma que o usuário da saúde mental tenha acesso efetivo e qualitativo aos serviços.

Em relação às pessoas que passam pelo processo de desinstitucionalização, isto é, que ainda estavam ou estão internadas compulsoriamente, tendo os cuidados com a transinstitucionalização como ponto de atenção, pleitear a construção de Serviços Residenciais Terapêuticos regionais e municipais, conforme normativas do SUS, entre outros componentes do SUAS, para garantir a desinternação e a moradia digna.

A saúde mental precisa ser prioridade, sem deixar ninguém para trás. Isso perpassa pela importância de fazer circular a informação correta e de alcançar todas e todos que têm direito às políticas de saúde mental, confrontando fake news e notícias alarmistas que não correspondem nem com a realidade, nem com os objetivos das políticas implementadas. É urgente que, ao menos por primeiro, a sociedade civil se afaste do ímpeto punitivista e asilar como solução.

Viva o cuidado em saúde mental, viva a luta antimanicomial!

* Luciana Fossi é psicóloga e integra o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS).

** Victória Mello Fernandes é socióloga e integra o Fórum Justiça do Rio Grande do Sul.

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko