Rio Grande do Sul

Coluna

Crônica em e de tempos tri difíceis

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"Não consegui retornar a Porto Alegre até hoje (quinta-feira, 16 de maio): estradas interrompidas, água por todos os lados" - Gustavo Ghisleni / AFP
O sol brilha, mas volta a chover forte, numa gangorra que deixa os nervos de todo mundo em pé

Esta é uma crônica-artigo de registro histórico e de desabafo, necessários para acalmar o coração. E para continuar sobrevivendo no meio da dor, das mortes, do sofrimento, da destruição.

26 de abril de 2024, sexta: Comemoro meus 73 anos com amigas-os, companheiras-os, Olívio Dutra, no restaurante Maria, Maria, na antiga Rua do Arvoredo, hoje Fernando Machado, centro de Porto Alegre. Feliz da vida, declamo um poema, escrito para a ocasião.

Dia 27, sábado, viajo cedo para a terrinha, Vila Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul. Mais festa e comemorações no sábado e no domingo, dia 28, com a família.

Dia 29, segunda, de madrugada, vou a Passo Fundo, onde acontece, a partir das 8h30, na Universidade Federal da Fronteira Sul, a Oficina Sul da PNEPS-SUS, Política Nacional de Educação Popular em Saúde, com presença de representantes do Ministério da Saúde, universidade e movimentos sociais e populares. A viagem é tranquila, alguma pouca chuva no  caminho. Sol em Passo Fundo.

Foram dois dias, 29 e 30 de abril, muito bons, tempo nublado, sem chuva. O debate sobre a PNEPS-SUS foi ótimo. À noite, mais comemorações de aniversário e declamação do poema. As notícias dos temporais Rio Grande afora começam a chegar. O fim da oficina é antecipado. Vou para a estrada, via Soledade. Outro grupo segue via Marau, Caxias do Sul. Viagem super complicada. Chego a Santa Emília no dia seguinte, 1º de maio, ao meio-dia, quando deveria ter chegado no dia anterior, pelas 20h (detalhes no texto "O caos está ao lado da porta", publicado nesta coluna em 3 de maio).

Cheguei vivo a Santa Emília. O outro grupo, Neidinha, Verinha, Dandara, Michele, Alcindo, Renata, Elisandro, teve que parar no meio do caminho, em Vila Flores, Veranópolis. Chegaram a suas casas uma semana depois da partida.

Dia 1º de maio e dias seguintes, a tragédia e o caos tomam conta do Rio Grande do Sul. Não consegui retornar a Porto Alegre até hoje (quinta-feira, 16 de maio): estradas interrompidas, água por todos os lados. Em Santa Emília, choveu mais de 600 mm neste período, roças e plantações dos manos Elma, Marino, Bruno e cunhada Rejane quase perdidas. A rodoviária e o aeroporto de Porto Alegre estão fechados, o centro de Porto Alegre e inúmeros bairros estão debaixo d´água, sem luz, sem energia, sem água, muitas famílias resgatadas por barcos e helicópteros, destruição de cidades inteiras, milhares de pessoas fora de casa. Tragédia, caos, que continuam, duas semanas depois do início da chuva e das tempestades.

Início de mês é tempo de pagamentos. A Agência do Banco do Brasil de Venâncio está fora do ar, as pessoas reclamando que não recebiam o que eu devia.

Finalmente, sol nos dias 8 e 9, quarta e quinta-feira, em Santa Emília. Tempo e oportunidade de caminhar na roça da família, comer algumas frutas que resistiram. Os manos, agricultores familiares, e sua feira semanal na cidade estão quase sem nada para oferecer aos clientes de décadas. Muita coisa destruída.

Aproveito os dias de sol para conseguir nas farmácias populares os remédios que ficaram em Porto Alegre e arrumar o carro rebentado na viagem. Não há como conseguir as peças: ou não há comunicação com os fornecedores, ou as lojas estão alagadas. Tudo transferido não se sabe para quando.

Dia 10, sexta, 8h, sou convidado por Daniel Seidel, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e do Movimento Fé e Política, para falar em seu programa semanal sobre os "Efeitos das Mudanças climáticas com Solidariedade e Profecia": tentar entender as causas do que está acontecendo, as medidas e ações imediatas de ajuda, a enorme solidariedade por todos os lados, milhares de voluntárias-os, redes e mutirão jamais vistos (ver o artigo-coluna "Águas e Solidariedade").

Dia 10, sexta, começa o frio. Pelo menos uma coisa boa acontece. O mano Marino, o mais novo dos nove da família, resolve acionar o fogão a lenha. Fogo aceso, calorzinho dos melhores, ele senta, ao lado do fogão, onde mamãe Lúcia sempre sentava. Eu sento na caixa onde se guarda a lenha, como fazia quando guri. Melhor ainda: ele resolve fazer na chapa do fogão a lenha os pinhões que a mana Elma comprou. Com boa companhia e gostosuras, diminui a ansiedade, melhora o lado psicológico, em crescente abalo.

Não há como poder parar, mesmo estando em Santa Emília e sem conseguir ir a Porto Alegre, como gostaria, todo mundo dizendo, até implorando, para ficar onde estou.

Dia 11, sábado, 9h, duas lives no mesmo horário: reunião da Ampliada do MNFP, Movimento Nacional Fé e Política, e do Conselho Diretivo do CAMP, Centro de Assessoria Multiprofissional. Os membros da Ampliada, de todo o Brasil, ouvem depoimento emocionado de Loiva Dietrich, de Porto Alegre, que teve de sair de sua casa e está num abrigo em Cachoeirinha. Foi feita uma avaliação do 12º encontro nacional, acontecido recentemente em Belo Horizonte e debatidos os passos e as ações do Mutirão pela Vida e pela Democracia que o MNFP promove com parceiros de todo Brasil.

A direção do Camp articula com a Abong, Associação Brasileira de ONGs, e com a Plataforma pela Reforma do Sistema Político ações solidárias imediatas em relação a tudo o que está acontecendo no Rio Grande do Sul e políticas públicas para o futuro, envolvendo as mudanças climáticas e o cuidado com a Casa Comum.

Dia 12, domingo, em pleno Dia das Mães, à tarde, há reunião com representantes do Ministério da Saúde e militantes de movimentos sociais e da ANEPS, Articulação nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde, para discutir ações imediatas e concretas no Rio Grande do Sul, governo federal e sociedade trabalhando juntos e solidariamente. 

Felizmente, chovem telefonemas, mensagens, pedidos de informação de todos os lados: um telefonema de Márcia Miranda e Leonardo Boff, mensagens de Frei Betto, do amigo Zeca Vermohlen de Florianópolis, de Theresa Siqueira de Alagoas, da Irmã Terezinha, da Bahia. ambas da ANEPS, da Gicelda de Rio Grande, da RECID, Rede de Educação Cidadã, de Jorge Alexandre, do Rio, de José Antonio Moroni, do INESC. Todas-os estão preocupadas-os, atrás de notícias, e saber como apoiar e ajudar solidariamente. A vida se renova e ganha mais vida.

Tempo maluco. A chuva volta nos dias 11, 12 e 13, os rios enchem-se de água mais uma vez. O sol brilha intensamente dias 14 e 15, mas volta a chover forte dias 16 e 17, numa gangorra que deixa os nervos de todo mundo em pé.

Ao mesmo tempo e aos poucos, a verdade e as causas do caos e da tragédia vão se tornando públicos, até para a grande imprensa. Houve sucateamento dos serviços públicos nos últimos anos, com falta de cuidado e manutenção das Casas de Bombas de Porto Alegre. Viu-se que o muro da Mauá, feito para proteger Porto Alegre das enchentes, tem falhas e furos. Houve a Privatização da Corsan, Companhia Rio-grandense de Água. Há tentativa reiterada de privatização do Dmae, Departamento municipal de Água, com seu sucateamento, mas tem milhões em caixa, sem usá-los. Houve a extinção do DEP, Departamento de Esgotos Pluviais, que era Secretaria municipal, e deixou de existir por iniciativa do governo municipal. Passada a tragédia, as cobranças aos entes públicos serão feitas, assim como a responsabilização de quem tem culpa e não cuidou do povo e da cidade como devia.

Resultado, até agora, dia 16 de maio, quinta-feira, em 18 dias: 151 mortes, 104 desaparecidos, milhares de desabrigados, casas destruídas, cidades inteiras sob colapso, 92% dos 497 municípios gaúchos atingidos.

A vida não está fácil. Mas como cantam os gaúchos Kleiton e Kledir, em Semeadura: “Nós vamos prosseguir, ´compañero´, medo não há.”

E, para terminar esta longa crônica de desabafo, aí vai o poema de aniversário (quem quiser conhecer a história da Rua do Arvoredo, de Porto Alegre, procurar via Google):

MARIA, MARIA NA RUA DO ARVOREDO

“As árvores escondem segredos/ na Rua do Arvoredo./ As árvores movem as folhas,/ mas não contam detalhes dos acontecimentos,/ dos fantasmas,/ dos crimes de outrora.

Aos 73, estou, feliz da vida,/ em vinte seis de abril de dois mil e vinte quatro,/ na Rua do Arvoredo,/ hoje Fernando Machado./ Cercado de monstros?/ Envolvido em crimes?/ Ameaçado por fantasmas?/ Armado de facas e rifles?/

´Maria, Maria,/ - cantam e encantam Milton Nascimento e Fernando Brant -,/ é um dom, uma certa magia,/ uma força que nos alerta,/ uma mulher que merece viver e amar/ como outra qualquer do planeta.`

Precisou chegar o Maria, Maria,/ um bar com as doçuras da vida,/ do encontro e reencontro,/ espantar os segredos/ e preparar a festa da bondade.

´Maria, Maria/ é o som, é a cor,/ é o suor./ É a dose mais forte e lenta/ de uma gente que ri/ quando deve chorar/ e não vive,/ apenas aguenta.´

A esperança renasceu na Rua do Arvoredo./ O tempo curou as feridas de todas e todos,/ companheiras, companheiros de mãos dadas,/ na mesma jornada de fé e ternura.

´Mas é preciso ter força,/ é preciso ter raça, / é preciso ter gana sempre./ Quem traz no corpo essa marca,/ Maria, Maria,/ mistura a dor e a alegria.`

Não há tempo a perder./ Não se celebram 73 mais ou menos bem vividos todos os dias,/ no caminho dos 100/ para quem quiser ver e acompanhar.

´Mas é preciso ter manha,/ é preciso ter graça,/ é preciso ter sonho sempre,/ - Dani, Márcia e compas -./ Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania/ de ter fé na vida.`

TÔ VIVO!/ TAMO VIVAS E VIVOS, celebrando sempre o inédito viável,/ a utopia,/ construindo todas e todos a Sociedade do Bem Viver.

Maria, Maria,/ na dança,/ no forró,/ na poesia,/ na beleza da música,/ na boa comida,/ nas cachaças do melhor sabor.

Tudo é paz,/ tudo é esperançar,/ tudo é hoje, amanhã, sempre./ Tudo é ninguém soltar a mão de ninguém.

À VIDA, AO PRAZER E AO AMOR!”

Que mais dizer e escrever hoje, 18 de maio de 2024? Milton e Fernando Brant foram proféticos. A vida continua. Na boa luta, ESPERANÇAR.

* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas