Políticos direitosos do RS votaram umas leis que ampliam a permissão do desMatamento no bioma Pampa
Nesses dias, quando as pessoas perguntam: e aí, tudo bem? Eu não sei bem o que responder. Sei, é uma forma, é otimismo. Mas nestas horas, no Rio Grande do Sul, é constrangedor dizer não, não estou bem, ou está tudo uma merda.
Então, vamos tentar pensar também por que nem tudo está perdido, como um dia escreveu Fito Páez, e falar que ainda têm pessoas que vêm a oferecer os seus corações.
Vou começar sendo sincera com vocês, sou uma privilegiada. Estou em casa, tenho casa, tenho luz, tenho internet. Agora estamos sem água nas torneiras, mas demorou em acabar. Muita gente deixou Porto Triste, o bairro, o prédio e, entre as pessoas que ficamos, felizmente, houve muita consciência e esticamos a da caixa d’água durante dias.
Então, perante a pergunta de como estou, muitas vezes digo que estou longe das águas, porém, perto da consciência social (e das chuvas, e da umidade).
Em poucos dias, nossa cidade tem mudado de uma forma absurda, nosso estado – nas duas acepções −, mas falarei de Porto Alegre que é onde estou.
Hoje, enquanto caminhava até a esquina para levar o lixo orgânico, vi passar uma caminhonete em cuja caçamba havia um bote. As imagens têm se ressignificado rapidamente. Antes, um bote, remos, implicava lazer, hoje, pessoas em perigo ou alguém querendo ir a ver o estado de sua casa. Caminhei mais uns passos e cheguei no El Aguante. Um bar que como tantos, agora, prepara marmitas e recebe doações. Aproveitei alguns momentos do fim de semana para selecionar roupas para doação que levaria mais tarde. Entrei para dar um oi e perguntar se precisavam de algo específico, sim, respondeu uma moça, hoje ainda não recebemos absorventes. Era uma das coisas que eu ia comprar. Difícil lembrar que as mulheres menstruam no imaginário comum. E, como normalmente se usa o masculino, chamado também de genérico, isso não ajuda. O patriarcado se enfia em cada brecha que pode. Nós, feministas, também.
Penso na situação de tantas mulheridades que tiveram que sair de suas casas, com a roupa do corpo e, do dia para noite começou a esfriar, os problemas da água instalados e o sangue descendo. Imagino o desespero.
Então, enquanto preparava a sacola com roupas com meias quentinhas, luvas, cachecol, pensei em pôr um sabonete gostoso, um cheirinho no meio, uns brincos que tenho de quando ainda usava. Sei que não são necessários, mas estão em bom estado e quem diz que alguém que teve que abandonar a casa não gostaria, mesmo num abrigo, mesmo num desespero, uma hora sentir um cheirinho bom, ou, sentir-se abraçada por um detalhe.
Fui ao supermercado e comprei absorventes e protetores diários que em épocas de escassez, ajudam a esticar o uso das roupas íntimas.
No caminho de volta, encontrei uma amiga que estava no pátio do seu prédio. Normalmente não sou daquelas pessoas que dão Oi e Tchau para todo mundo, sei lá, não sei por que, espero que não pensem que é antipatia, talvez ando sempre entretida com algum pensamento na cabeça, mas depois de 3 dias de chuva, de não sair de casa, de estar em uma situação tão limite, a gente quer conversar e saber como estão as pessoas. Gritei um Oi e me detive para um sorriso. Ela estava enchendo umas garrafas na torneira e me perguntou se eu tinha água. Não, acabou. Eu não terminei de dizer que não precisava que ela já estava enchendo e insistindo em me dar duas garrafas que as pendurou no meu ombro, numa sacola de pano.
É muito bonita a solidariedade que a gente está viVendo.
Semana passada, uma hora saí a caminhar e fui visitar a nossa querida Cidade Baixa. Nunca seu nome disse tanto. Para quem não é de Porto Alegre, a também conhecida como CB, é um bairro boêmio, cheio de bares e movimentação. Eu não reconhecia o lugar! Parecia uma imagem estancada no tempo. Foi um êxodo. Dias atrás vimos imagens das pessoas abandonando suas casas, muitas pessoas. É tão difícil acreditar que isso é aqui e não lá nessas terras longínquas que a gente assiste na tevê, no jornal da noite. Aproveito em recomendar o texto da escritora Julia Dantas, falando de quando teve que sair de casa.
Está tudo fechado na Lima e Silva, até o supermercado numa sexta-feira às 17 horas (isso numa sociedade capitalista é um baita parâmetro), os carros vão para um lado, para o outro, já não tem isso de mão e contramão.
Nunca vi algo assim.
Uma hora fiquei a beira das águas, vendo os botes chegar, em lugar de carros. Conversando com as pessoas, uma mulher mencionou a Joaquim Nabuco. Eu fiz um gesto de surpresa e disse alguma coisa. Acho que meu sotaque agudizou, ela abriu grandes os olhos e me olhou perguntando da onde eu era. Será que imaginou que estava falando com uma repórter internacional de segurança climática?
Vi a chegada de um bote com uma senhorinha que mal se mexia. Tomaram-lhe os sinais vitais e ficaram esperando o SAMU.
A solidariedade brilhava. As histórias de resgate eram únicas, como as carícias a um cachorro que ainda estava com o rabo preso entre as patas junto a um prato cheio de comida.
Se a gente achava que tinha visto o poço com a pandemia, ainda faltava mais um tanto.
O que eu quero dizer e gritar é que os políticos direitosos do RS, há pouco, votaram umas leis que ampliam a permissão do desMatamento no bioma Pampa. Então, é o Pampa e é Gaia e é a Pachamama unidas em um Grito voraz que diz No podrán con nosotras!
* mariam pessah é ARTivista feminiSta, escritora, poeta e tradutora. Autora de Meu último poema, 2023; Em breve tudo se desacomodará, 2022; entre outros. Organizadora do Sarau das minas/Porto Alegre, desde 2017, e coordenadora da Oficina de escrita e escuta feminiSta. Atualmente também tem uma coluna Conversa invers(A) no Youtube.
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo