Rio Grande do Sul

TRAGÉDIA CLIMÁTICA

Acidente ou sabotagem?

Necessárias doações empresariais não fazem parte da lógica do capital; como será quando a tragédia sair dos holofotes?

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Senhores empresários, poderiam continuar suas doações APÓS a tragédia?" - Joédson Alves/Agência Brasil

A catástrofe climática atingiu o Rio Grande do Sul apesar de todos os alertas, avisos, relatórios e previsões que foram feitos pelos cientistas aos governantes. Descrevi em Enchente, Guerra e Capital (disponível em https://abre.ai/jJA4) a transformação promovida pela política neoliberal como máquina de guerra com o objetivo de redução da proteção ambiental e precarização dos serviços de saneamento. Sugeri também que a tragédia gaúcha está no horizonte do capital: acelerador de rendimentos, é produto também da política neoliberal que junta o primado da produção com o da destruição.

Mas se todos os agentes políticos foram avisados, e ainda assim, agiram do modo que agiram, criando as condições para a agudização da tragédia, resta a pergunta: é um acidente climático ou uma sabotagem?

Para responder à questão, o filósofo e urbanista Paul Virilio defende em sua obra “Guerra Pura” (Brasiliense, 1984) o desenvolvimento urgente de uma inteligência dos acidentes. Se as autoridades sabem dos efeitos da industrialização que levam a crise climática, sabem da necessidade da manutenção de equipamentos, mas ainda continuam agindo assim, é porque estão sabotando nosso modo de vida.

Sabotagem é prejudicar, o capital é esse agente sabotador, ou melhor, auto sabotador, quando pensamos que a política neoliberal que incentivou veio em prejuízo de seu próprio lucro, com a falência de indústrias e quebra de safras, etc. Ou seria pior, seria o gênio maligno, não do social, mas do capital, como fala o sociológo Jean Baudrillard (1929-2007) em sua obra A transparência do mal: seria a perda de agora algo desejável para garantir lucros futuros? Isso é contraditório com o fato de que vemos dezenas de grandes empresas colaborando com a tragédia, fazendo suas doações.

Uma coisa é o pequeno comerciante, o pequeno empreendedor, o pequeno agricultor que participa porque vive na comunidade. É o seu lugar. Outra coisa é o grande empresário, o agronegócio, muitas vezes distante de todo o local da tragédia e que participa. Para estes, se tudo deve retornar para a axiomática do lucro, como explicar sua atitude?

Segundo o antropólogo René Girard (1923-2015), autor de Violência e o Sagrado (Paz e Terra, 2008) as doações das grandes empresas neste momento não passariam de produtos da mimésis (imitação) “eu não desejo nada até que outro o faça”. Mais do que iniciativa pessoal de um empresário de visão, a iniciativa se dá pela introdução de um terceiro, rival, origem do seu desejo, o que, em termos de Relações Públicas, põe em jogo, além da consciência, a imagem no mercado.

Na medida em que várias empresas colaboram com as vítimas da tragédia, outras, por mimésis, entram no movimento. A imagem que fica é a do “capitalismo bonzinho”. Será? Por que questiono a verdadeira natureza das doações das grandes empresas? Para afirmar que as doações precisam continuar após a catástrofe. As chuvas passarão, mas os abrigos permanecerão. E continuaremos precisando de doações.

Doação boa é doação feita, dirão aqueles que acreditam no mito do “capitalismo bonzinho”. Estou dizendo que precisaram continuar após o trauma, mas não temos nenhuma garantia de que isso irá ocorrer. Sem elas serão insustentáveis os abrigos: se elas nascem do desejo de repercussão midiática, quando sair da agenda pública, das preocupações dos meios de comunicação, elas poderão escassear.

Já vimos isso acontecer em outras tragédias como em Petrópolis. Alguém se lembra do desfecho, do que aconteceu com as pessoas abrigadas, das casas a serem reconstruídas? Se os governantes têm um defeito, o de não se preocuparem com o antes, a prevenção, a sociedade tem outro: não se preocupar com o depois.

A tragédia é a melhor fonte de lucros. De telhas para casas à criação de empreendimentos, de fornecimento de alimentos às políticas de reconstrução, da venda de novos carros à reposição dos estoques dos supermercados, elas funcionam para fazer retornar tudo para o fim original, o de gerar lucro para o capital  assim que baixar a poeira, digo, a água. Em obra posterior, Un paisage de acontecimientos (Paidós), Virilio cita o estudo feito pelo Estudio Sigma para a empresa Suisse Re, resseguradora mundial, onde diz que as catástrofes técnicas (explosões, incêndios, atos de terrorismo) e as naturais (inundações, sismos, furações e demais) geraram lucros de 35 milhões de dólares.

Mas se o apoio do grande mercado às vítimas não significa bondade dos empresários, ela significa o quê? O fato de inúmeros empresários estarem colaborando com sua base industrial e comercial para favorecer as vítimas mostra, segundo Virilio, que estamos no campo da economia de guerra, quando o potencial econômico de um lugar é destinado para o combate na frente de batalha. É um investimento em imagem, é um ato moral, é a resposta a uma convocação à participação, é o efeito da indistinção entre o militar e o civil, engajamento de parcela de capitalistas em prol da defesa civil.

Há inúmeros níveis de participação na tragédia que revelam diferentes níveis de engajamento moral e que vão desde aqueles que doam mercadorias e produtos a aqueles que, como as indústrias Grendene, pedem que seus funcionários doem as doações que receberam da empresa. Como se eles também não as necessitassem. Ou outras que se dizem “postos de recebimento de doações”.  

Segundo o filósofo coreano Byung Chul-Han, em livro homônimo, vivemos na Era da Transparência. Tudo, absolutamente tudo, precisa ser vir a público. Demorou o engajamento, mas quando apenas um empresário iniciou, por mimésis somaram-se outras grandes e médias empresas.

As mídias sociais são chamadas de quarto poder por uma razão: têm grande poder em nossa sociedade e na tragédia cobram envolvimento do capital, de empresários, de quem tem recursos. Por isso as perguntas a todo momento: Quem doou? Fulano doou? Em qualquer sentido, doação ou participação afeta as marcas: todos que têm nome no mercado têm algo a preservar, sua imagem. Talvez isso signifique uma esperança: até o capital, em seu limite, precisa ceder de seus imperativos.

Agradecemos os empresários que tenham feito isso. Mas reforço a ideia de que não existe “capitalismo bonzinho”: se existisse, não existiriam pobres. Senhores empresários, poderiam continuar suas doações APÓS a tragédia?

Umair Haque, no artigo "Seis mitos sobre o ‘bom’ capitalismo" (disponível em https://abre.ai/jJ2G) afirma que é um mito a crença de que o capitalismo torna as pessoas melhores "ao instilar nelas valores de moderação, humildade, coragem e sabedoria, as fazendo ‘alocêntricas’, ou focadas no outro." Imaginar que os empresários, por serem donos do capital, fazem suas doações unicamente por humanidade é desconhecer os mecanismos da engrenagem capitalista que fabricam. Só existe uma forma de provarem que estou errado: continuando com as doações!

Sermos expostos aos acidentes gera dividendos para o capital. A ausência de políticas habitacionais para a população pobre que ocupa regiões de risco exige, após uma tragédia, a contratação de grandes incorporadoras, o que aumentam os lucros das empreiteiras, é sempre disso que se trata.

Lembra a jornalista Silvia Maccuzo que o governo insiste na exploração de petróleo da margem equatorial. Quando isso vai parar? Quando faremos campanhas de conservação das matas ciliares para preservar as encostas? Enquanto o agronegócio continuar destruindo a legislação ambiental através da apropriação do Estado em nome do lucro e associações de grandes proprietários disseminarem informações falsas sobre a natureza, estaremos expostos a catástrofes. E o pior, a exposição contínua as cenas de catástrofe não nos dessensibiliza ainda mais para as tragédias?

O problema não é apenas real, a enchente, é simbólico, sua representação. O mercado vive também do espetáculo, seja da imagem da participação, fazendo-se as empresas estarem presentes no momento de comoção, seja da imagem da tragédia, que alavanca audiência, presente nas cenas mais loucas em nome da liberdade de expressão e informação, mas cujo efeito também é a conversão do espaço público em espaço do terror das vítimas e heroicidade das autoridades.

A Rede Globo transferiu suas equipes para acompanhar a tragédia, praticamente a transmitindo em tempo real. Mas, na lógica de comunicação, como já vimos dezenas de vezes, a atenção tenderá a diminuir e as equipes a retornarem para suas sedes. Retorno a minha pergunta: as campanhas de doação continuarão? Claro que não! Nesse momento, será o protagonismo do governo local e estadual o responsável pela manutenção de dezenas de abrigos que retém a população que aguarda a construção de suas novas casas.

Serão nossos novos campos Guantánamo? E se estamos construindo abrigos que, no futuro, pela total impossibilidade de recursos, se tornarão nossos campos de refugiados? No presente lutamos todos para salvar as vítimas. Mas eu pergunto o que será do futuro próximo, quando ainda estaremos em luta e fora do alcance da cobertura de mídia nacional?

O acidente climático é a outra face do atentado neoliberal. As vítimas da catástrofe de Mariana e Brumadinho são diferentes das vítimas das cheias do Rio Grande do Sul? Entendo que não, todos se originam na dupla omissão de autoridades e do lobby dos detentores do capital. Ao final, depois de salvas as vítimas, qual é seu destino e dos responsáveis?

Se para as vítimas é preciso seguir o princípio de seguridade, garantido a recuperação de uma vida digna, para os responsáveis é preciso seguir o princípio de responsabilidade que coloca o capital como responsável pela repetição das tragédias e as autoridades pela falta de precaução. As enchentes são acidentes climáticos, e nos termos de Virilio, se não seguimos as recomendações dos técnicos, da ciência, o que temos é um acidente do conhecimento.

Temos o conhecimento daquilo que fazemos e que agrava a crise ambiental, temos conhecimento que precisamos reforçar nossas barreiras, de proteger nossos sistemas de segurança, mas como lembra o filósofo esloveno Slavoj Zizek, citando a célebre frase de Marx: “Eles não sabem o que fazem, mas o fazem” (O capital, v.1). Ou mais além, como lembra o filósofo Peter Sloterdijk em seu Crítica da Razão Cínica, a modificando: “Eles sabem o que fazem, mesmo assim o fazem”. O que significa que a catástrofe climática é produzida conscientemente porque está baseada na defesa da forma-mercadoria e que sua última vítima é a negação do conhecimento.

O governo neoliberal não abandona o capital. Nossos governantes não são capazes de criar as medidas necessárias para combater o desastre climático porque naturalizaram nossa realidade, de que não é possível viver fora do capitalismo. Lidam com a natureza a considerando como fonte do dinheiro e esquecem assim que ela é fonte de vida simplesmente. É o retorno da alienação concebida por Marx: da mesma forma que compramos uma mercadoria sem consciência das relações de dominação, da mesma forma nossas ações precedem e negam seus efeitos ambientais.

Nossas políticas públicas ambientais continuam assim a serem guiadas pela inversão fetichista, a ideia de que o melhor ainda é sustentar o capital porque ele... nos une! Por favor! Nossos políticos sabem muito bem como as coisas são, só agem como se não soubessem, a fantasia ideológica nos termos de Zizek. É este seu papel, tapar a ausência de sentido da exploração do meio natural, da loucura que é achar a produção econômica como algo superior a natureza. Só podemos acreditar que o governo continue agindo contra a preservação do meio natural porque vive no modo automático, sem uma reflexão. A ideologia neoliberal está empenhada em apagar a ideia que é impossível viver fora de suas condições.

Terminamos o ano de 2023 fértil em acidentes climáticos, grandes chuvas, especialmente em setembro, que produziram grande sofrimento e destruição. Meados de 2024 é uma escola: no futuro, as autoridades públicas devem tirar alguma lição, que é assumir sua missão de encarar os extremos climáticos que se anunciavam para o estado, para as cidades. “É a questão da morte: não podemos dela escapar, temos de encará-la intelectual e fisicamente, como fazem os médicos e os artistas. Nisso é que consiste a virtude política e civil” (Guerra Pura, 103).

Jorge Barcellos é historiador, doutor em Educação, autor de O êxtase neoliberal (Clube dos Autores)

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira