Tive o privilégio de participar das exitosas experiências da Administração Popular de Porto Alegre (1989 a 2000) e no Estado (1999 a 2002). Foi um período de grandes transformações políticas e conceituais. O Orçamento Participativo organizava a cidadania nas discussões e definições da aplicação dos recursos públicos. Inversão de prioridades, era o lema. Inverter porque, antes, o orçamento público priorizava os interesses do mercado. Era preciso reequilibrar essa equação. Com isso, a cidadania redescobria a vocação inclusiva do estado.
As Administrações Populares entendiam as estruturas públicas como instrumento de promoção de políticas necessárias para garantir, de forma universal e gratuita, os serviços essenciais como saúde, educação, assistência social, habitação, mobilidade, desenvolvimento urbano e ambiental sustentável e, claro, democracia. Os Planos Diretores foram sendo repensados para ter um uso e ocupação do solo de forma a reduzir a exclusão territorial das camadas populares e de exercer controle social sobre o grande capital que vê as cidades apenas como espaços de exploração econômica. Já naquela época, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul estavam conectados, através dos Fóruns Sociais Mundiais, com os movimentos globais em defesa do equilíbrio ambiental e da necessidade de um outro modelo de desenvolvimento.
Infelizmente, nas últimas duas décadas o RS e Porto Alegre deram uma guinada privatista cujos resultados sofremos agora. A perspectiva da democracia participativa deu lugar a uma concepção autoritária e centralizadora das políticas públicas em prol dos interesses do mercado. Os serviços públicos foram sendo sucateados e mercantilizados. A legislação ambiental foi esquartejada gerando degradação ambiental e colocando a população à mercê da crise climática. Órgão essenciais para Porto Alegre como o Departamento de Esgotos Pluviais – DEP e para o estado como a Companhia Estadual de Energia Elétrica – CEEE foram extintos ou privatizados.
O Rio Grande do Sul, nosso bem comum, onde nascemos, criamos nossos filhos e netos, cultivamos nossas culturas e tradições, onde trabalhamos e desenvolvemos nossos projetos e sonhos, foi sendo privatizado para interesses meramente de mercado, sem levar em conta o papel que cumpre na vida de cada um e de cada uma de nós.
O conceito de bem comum é ancestral. Parte da supremacia do interesse coletivo em relação aos interesses privados. Tem uma dimensão ética onde o objetivo da sociedade humana é garantir igualdade social e econômica para que todas as pessoas tenham condições de vida plena e com dignidade. Como princípio ético, orienta o sentido das leis e da organização do estado, que devem sempre promover os interesses do coletivo.
Esse conceito é tão potente que o próprio capitalismo se apresenta como sistema que teria a capacidade de promover o desenvolvimento e o bem-estar para todas as pessoas. Mas, no entanto, essa afirmação é uma falácia. Na prática, ao colocar o lucro acima dos direitos das pessoas, o capitalismo é uma máquina de produzir exclusão, concentração de renda e degradação do meio ambiente. Práticas que depõe contra o sentido básico do bem comum.
Nas últimas décadas, o neoliberalismo elevou o capitalismo a máxima potência. Segundo estudos do Observatório da Política Fiscal, de 2017 a 2022, período que inclui a Pandemia da Covid-19, a parcela mais rica da sociedade brasileira (1%) teve um acréscimo de 63% (sessenta e sete por cento) em sua renda. Neste mesmo período, a maioria da população brasileira (95%) teve uma queda de 33% (trinta e três por cento) em seus rendimentos médios. Toda essa concentração de renda não teria como promover mais desenvolvimento para o povo gaúcho e brasileiro. A busca do lucro a qualquer custo das empresas privadas põe a vida da população em risco. Em contraponto, a defesa do bem comum como valor ético vem se tornando um poderoso conceito onde o direito a vida não pode e não deve ser comercializável.
A calamidade climática que arrasou cidades gaúchas e colocou Porto Alegre em situação crítica, está pondo à prova este conceito. A crise dos sistemas de energia, drenagem e de abastecimento de água potável para milhões de pessoas, gerou um imperativo humano de ação imediata. Este imperativo colocou governos, sociedade civil e também, as empresas privadas gaúchas e brasileiras, entre as escolhas econômicas ou em defesa da vida.
Como resultado, muitos empresários, somaram-se as ações do estado e das organizações da sociedade civil, doando água, fornecendo cestas básicas, colções, disponibilizando seu tempo, seus equipamentos, veículos e máquinas para salvar, resgatar, abrigar e cuidar das pessoas em situação de risco, em suma, renunciando a acumulação do capital para cuidar da vida. A solidariedade é a tônica do momento. O Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo se mobilizam pela vida. O imperativo do bem comum se faz presente.
É o que demonstra Dão Real em seu artigo “Somos, Todos, Estado!” quando diz que “Em momentos como esse, todos são Estado, e cada cidadão abdica da sua condição de indivíduo e passa agir como cidadão, ou seja, como alguém que coloca o interesse comum acima do seu próprio interesse individual. A participação da sociedade não reduz a importância do Estado, como alguns têm tentado pregar, mas a amplia. A lógica do Estado é que prevalece sobre a lógica do mercado e do individualismo. Os direitos à vida, à proteção social, à saúde, à alimentação se sobrepõem aos ganhos individuais e ao lucro.”
A pergunta que precisamos nos fazer é porque somente agir assim em momentos de calamidade, de desespero, de crises ambientais? Por que, quando a vida “volta ao normal” nos deixamos iludir pelo chamado interesse do mercado?
É inegável que os eventos extremos de chuvas e de secas que estão acontecendo no Rio Grande do Sul e em tantas outras partes do mundo, tem como causas a crise climática provocada pela elevação das temperaturas no planeta. Inegável também que, os principais responsáveis pela emissão dos gases de efeito estufa são o desmatamento das florestas para a mineração ou a pecuária, a utilização de combustíveis fósseis, a monocultura em grande escala que reduz a diversidade nos territórios, o uso excludente e desordenado dos territórios das cidades, das áreas costeiras, dos oceanos e das margens dos rios pondo em risco a preservação da população indígena, ribeirinha e quilombola. Todas estas práticas depredatórias têm sido “justificadas” pelo neoliberalismo como direito das empresas privadas em fazer o que bem entenderem para obter lucro, mesmo em detrimento do direito a vida.
Infelizmente, esse também tem sido o argumento utilizado pelos últimos governos estaduais e municipal para a privatização de serviços essenciais de abastecimento de água, de saneamento básico, de mobilidade e de energia elétrica, todos sendo sucateados para justificar a privatização, deixando a população a mercê dos interesses do mercado.
Os bens comuns não podem estar ao alcance dos interesses de mercado, justamente porque são comuns, são de interesse de toda sociedade e meios essenciais para a garantia da vida com dignidade. Os bilhões de recursos federais que estão sendo enviados ao Rio Grande do Sul devem servir para construir novos sistemas públicos de defesa civil, controle sobre o uso e ocupação do solo, planejamento e gestão ambiental, acesso a energia, gestão das águas e organização do mundo do trabalho visando o bem comum. É preciso criar mecanismos para que estes recursos não sirvam para manter as práticas predatórias que tem como origem no ideal neoliberal de que o capitalismo e a livre concorrência seriam capazes de atender as necessidades do povo gaúcho. É fundamental a inversão de prioridades.
Neste sentido, a proposta de criação do auxílio calamidade ambiental como política pública permanente apresentado pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político é fundamental.
A calamidade climática abriu uma janela histórica que está unindo todos os segmentos sociais em prol da defesa de um estado forte, com controle social através da democracia participativa, capaz de reconstruir o Rio Grande do Sul para todo povo gaúcho, e não apenas para a elite privilegiada. Abraçar esta oportunidade não é uma escolha, mas um imperativo para a sobrevivência do povo gaúcho e brasileiro.
* Mauri Cruz é advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, diretor executivo do IDhES – Instituto de Direitos Humanos, sócio do CAMP – Escola do Bem Viver, da consultoria Usideias e membro do Conselho Internacional do FSM.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo