“Não se deixar esmagar, não sei deixar cooptar, lutar sempre! (Florestan Fernandes)
É na Rua Florestan Fernandes que neste domingo de manhã chuvoso duas mil refeições estão sendo preparadas. O destino das quentinhas é certo: desabrigados das enchentes da região Metropolitana, em especial aos assentamentos de Reforma Agrária do município de Eldorado do Sul e região.
Assentamentos como Integração Gaúcha, Conquista Nonoense, Apolônio de Carvalho ficaram e estão totalmente alagados. A chuva que começou novamente na sexta-feira (10) não para e a previsão é de continuar em grandes volumes, aumentando a angústia e o medo de quem já perdeu tudo o que tinha, não sabe quando volta para sua casa e sem ter casa para voltar.
Pelas 4 horas da manhã Dênio e seu filho Leonardo ateiam fogo nos fogões. Os dois tem larga experiência com preparo de refeições em grande escala e coordenam a equipe. O feijão que ficou de molho desde o dia anterior é o primeiro a ser cozido.
Pelas 4h30 mais companheiros e companheiras começam a chegar. É hora de cozinhar a mandioca e fritar a carne. Essa vai para tachos em fogo de lenha em borralhos improvisados pelo seu Zang que garante a lenha e as pás de madeira para mexer os 150 a 200 kg de carne em iscas que vão ser preparados.
O arroz orgânico é um dos últimos a ir pra panela. O cozimento é rápido e vai quentinho para as cumbucas. Desde o dia 7 de maio quando a cozinha passou a operar essa é a rotina. Mas no domingo foi Dia das Mães! No cardápio teve carreteiro, batatinha cozida e feijão.
Por volta das 7h30 da manhã chegam mais voluntários. O Instituto Josué de Castro envia todos os dias neste horário 15 estudantes e professores da equipe pedagógica para se somar ao esforço coletivo. É organizada uma linha de produção para a montagem das quentinhas: os que servem cada alimento nas cumbucas, os que tampam, os que lacram e colam a colher para ir junto, os que colocam nas caixas e assim seguem. Mais voluntários se somam todos os dias, todos têm algo a fazer: varrer o chão, cortar a lenha, lavar as panelas, limpar os banheiros, descascar mandioca, abóboras e batatas.
Dênio e Leonardo, além de coordenar a equipe das panelas têm mais uma importante função. Eles são motoristas de uma ambulância. Com vários acessos interrompidos e os caminhos congestionados é de ambulância que os alimentos conseguem chegar até o município de Eldorado. De lá um barco leva até as famílias. Quando não está chovendo, outra forma de transporte é de aeronaves. Helicópteros da polícia e defesa civil de diferentes estados fazem viagens diárias levando as caixas com marmitas para distribuir.
Na Rua Florestan Fernandes está localizada a sede e a Indústria de Processamento de arroz orgânico da Coperav. É na sede social da cooperativa, um galpão construído em estilo rústico, tipo CTG – Centro de Tradições Gaúchas, que a cozinha solidária acontece. O arroz produzido no Assentamento Filhos de Sepé é processado na indústria da cooperativa e é comercializado principalmente em programas institucionais de compras de alimentos para escolas através do PNAE e programas de segurança alimentar como o PAA.
Para a produção das quentinhas o arroz vem de destino certo e está garantido. O Assentamento Filhos de Sepé em Viamão não teve suas áreas de moradia afetadas pelas fortes chuvas. As 376 famílias assentadas encontram-se em segurança e abrigadas em suas casas. Apenas na área de produção houve percas nas áreas de arroz, produção de bovinos e hortaliças.
Além da Coperav, o Assentamento Filhos de Sepé recebe em seu território livre de agrotóxicos e transgênicos o Instituto de Educação Josué de Castro, espaço de formação e educação principalmente de jovens de áreas de reforma agrária de todo o país. Josué de Castro foi um grande estudioso do tema da fome deste país, das suas causas, mas principalmente como combatê-las.
Toda a equipe pedagógica e estudantes do Instituto estão engajados como voluntários. Ou diretamente na cozinha, ou descascando e picando legumes que vêm de doação ou ainda descarregando caminhões de donativos nos galpões da Associação do assentamento que estão servindo de base de logística para a região. O momento agora é de combater a fome e a sede dos desabrigados que são milhares. Neste 12 de maio estimam-se em mais de 500 mil pessoas desalojadas por todo o estado.
A chuva cai e cai com força. Domingo, úmido, nebuloso, triste. A previsão dos especialistas indica que o nível das águas do Guaíba que já começara a baixar deva voltar a subir devido ao grande volume de chuvas na bacia do Taquari. Estas águas devem chegar ao lago Guaíba na próxima terça, dia 14. Mil e novecentas marmitas foram produzidas e entregues neste domingo. Com o alimento vai também um recado a quem o recebe: contem com cada um de nós. A conquista da terra foi coletiva e a reconstrução agora também será com a força da nossa organização e do nosso movimento: O MST.
Hora de limpar tudo e fazer os preparativos para a produção de segunda-feira. Não há período determinado para o funcionamento da cozinha. Até que haja pessoas desalojadas e com fome as panelas estarão cozinhando alimentos. As doações chegam de todos as formas possíveis, de todos os lugares. O MST tem centralizado o recebimento em dinheiro através de do PIX 09352141000148 (CNPJ do Instituto Brasileiro de Solidariedade) e garantido os alimentos e insumos para a produção das quentinhas. É a solidariedade gerando mais solidariedade.
No Assentamento Filhos de Sepé, na Rua Florestan Fernandes, o Instituto Josué de Castro se somou à cozinha solidária dos Sem Terra. Próximas a cozinha estão as ruas Paulo Freire e Roseli Nunes. Se pudessem estar presentes de corpo penso que estariam na linha de frente mexendo as panelas, descascando mandioca e ou dirigindo a ambulância cheia de alimentos.
A solidariedade entre os povos e entre os mais necessitados tem se mostrado acima de tudo uma prática que contagia. Inúmeras cozinhas se multiplicam pela região, conduzidas por voluntários que na maioria das vezes lhe restaram apenas seu tempo para doar.
* Huli Marcos Zang, Presidente da Associação dos Moradores do Assentamento Filhos de Sepé – AAFISE. Diretor da Coperav (Cooperativa dos Produtores Orgânicos de Reforma Agrária de Viamão)
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko