Meu nome é Ligia Maria Bergamaschi Botta. Eu me formei em Arquitetura e Urbanismo em janeiro de 1969. E, em agosto e outubro de 1969, respectivamente, ingressei na Secretaria de Planejamento da Prefeitura de Porto Alegre - onde chegaria ao cargo de supervisora de planejamento urbano - e na Faculdade de Arquitetura da UFRGS.
Desde então eu vivi, cresci, me alimentei e me apaixonei por Porto Alegre. Sempre dia e noite em cima dos mapas da cidade. Trabalhei basicamente em questões de estrutura urbana e nessas cinco décadas pude acompanhar muita coisa.
Meu marido, o engenheiro Décio Carlos Botta, teve vivências paralelas e semelhantes porque antes de se formar já tinha contato com Porto Alegre.
Trabalhou no DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento), então responsável pelas questões de saneamento da Capital e que, depois, foi extinto. No início da carreira, atuou no DMAE, o órgão municipal que absorveu as funções do DNOS.
Quando estava no DNOS, foi ele quem fiscalizou a construção de cinco das 18 casas de bombas – hoje são 24 – responsáveis pelo esgotamento das águas que ficariam represadas pelos diques e o Muro da Mauá (avenida).
A cota máxima de inundação seria de 6 metros
Na verdade, os diques e o Muro da Mauá formam o sistema que foi proposto num estudo muito criterioso e competente de um grupo alemão contratado pelo DNOS e feito também com alguns profissionais do Estado.
Chegaram à conclusão de que, em função de falta de dados que oferecesse um panorama mais preciso da periodicidade das enchentes, que estabeleceram entre 80 e 100 anos, a cota máxima de inundação seria de 6 metros.
Foi proposto um anel em torno do Centro e da zona Norte, ali na entrada da BR-290, onde estão a Fiergs (Federação das Indústrias/RS), o aeroporto, o Grêmio Navegantes, o Centro de Porto Alegre, a Usina do Gasômetro. Essas terras são todas baixas, abaixo da cota 6, predominantemente cotas 1, 2, 3, 4, 5 por aí.
O dique foi feito em todo o entorno dessa área, no nível 6, mais alguns portões para possibilitar a passagem – o porto e o porto do bairro Navegantes ficariam fora desse dique e precisaria haver acesso.
Os técnicos propuseram uma pista elevada em cima do muro
Os diques foram construídos com taludes e uma via em cima, que seria para contorno da área central da cidade. Propôs-se também que, como o dique não poderia ser implantado sob forma de talude na (avenida) Mauá, a solução seria um muro.
Na ocasião, os técnicos propuseram uma pista elevada em cima do Muro da Mauá, fazendo a ligação entre a avenida Castelo Branco e a Usina do Gasômetro. Permitia que o visual do rio fosse preservado.
Lamentavelmente, a via elevada não foi feita. A estrutura do muro foi executada, calculada, com a possibilidade da carga dessa via acima. A cada cinco metros, pelo lado do cais, haveria um pilar de apoio. Se erguida, a via teria 17 metros de largura.
Algumas pessoas pensam que o muro é um enfeite. Na verdade, tirando-se o muro, o restante do sistema de contenção estaria totalmente inválido. Não dá para acreditar que, por tanto tempo, tentariam destruir o muro...
Por sorte nossa, o muro foi reforçado e, graças a isso, manteve-se íntegro até hoje pois, nesses anos todos – foi feito na década de 1960 – nunca houve manutenção no concreto.
Concreto precisa de manutenção porque é agredido pelas forças da natureza. Vento, poeira, chuva, tudo isso são elementos que vão agindo e vão deteriorando o concreto.
Já os portões foram feitos em material metálico. Estes mais ainda precisariam de uma manutenção mais efetiva. O metal – ferro – se deteriora ainda com mais facilidade.
Tal manutenção, se feita, foi muito precária. Tanto que, nos dias atuais, esses portões estavam funcionando de uma forma bastante difícil. Estavam abaulados, com frestas, enferrujados.
E, como todo mundo sabe, no evento de agora, o portão da avenida Sertório foi derrubado pela força das águas.
Foi uma pena que, nesses anos todos, tantos grupos se uniram para tentar derrubar o muro, desmerecendo seu valor sem nem conhecer o porquê. Eram forças bastante vigorosas e noticiários intensos sem nada para tentar fazer com que ele fosse mantido e bem mantido como uma obra prioritária para a preservação das áreas do entorno abaixo da cota 6 e de possível inundação, como estamos vendo agora.
Nós, que vivemos tudo, ficamos magoados, por vermos como os trabalhos técnicos, sérios, são pouco considerados e tratados com tanta futilidade.
Porto Alegre está beirando o caos. Acho que todo mundo vem notando, não é?
Mas a nossa situação também não é só fruto dessa falta de conservação. Nossa cidade está assim porque nesses últimos 40 anos o nosso planejamento urbano se encontra à deriva.
E por qual motivo?
Porque a topografia da cidade é um funil. Sua ponta é a Usina do Gasômetro, o Centro Histórico, e ela se desenvolve em raios. As nossas avenidas, ou estão no topo do morro, ou estão nos vales.
No topo do morro, a Independência, no vale, a Cristóvão Colombo, ou a Oswaldo Aranha. Como são em topo de morro ou vale são de difícil alargamento, implicaram em muitas desapropriações e cortes nos morros, que são obras caras.
Então, é muito difícil alargar vias. Toda a circulação depende das nossas escassas vias que remontam do tempo da fundação de Porto Alegre. Nossas vias se originaram de caminhos de carroças. E não progredimos muito mais do que isso.
Como não temos um transporte coletivo eficiente, todo ele ocorre através de carros ou ônibus de pouca capacidade. Não há um sistema de metrô. Os últimos planos diretores não foram definidos em função de uma ocupação conveniente e de uma densidade compatível com a nossa infraestrutura de escoamento viário, de abastecimento de água, de esgoto, de abastecimento de energia elétrica.
Tem sido definidas, as nossas leis urbanísticas, muito à vontade dos grupos e corporações da construção civil. Que erguem edifícios de 12, 15, 19 andares. Cada vez a densidade fica maior, as ruas mais cheias, a infraestrutura mais sobrecarregada.
Porto Alegre está beirando o caos. Aliás, acho que todo mundo vem notando, não é?
Antes o congestionamento era das 17h30 às 19h30. Agora, é no dia inteiro.
Este é o desabafo de uma pessoa apaixonada por Porto Alegre
Estamos numa situação difícil. Se não são as águas, são as densidades exageradas e a falta de critério no planejamento urbano, a falta de bom senso, a falta de pensar no povo.
É muita tristeza.
Se tivesse sido feita a manutenção das casas de bombas, da forma de esgotamento das águas servidas para que não retornassem pelas canalizações...
Não é por causa do Muro da Mauá. Ele segurou muito bem. Só o portão arrebentou, mas essa água que está inundando é de esgoto.
Nada disso precisava estar acontecendo. Este é o desabafo de uma pessoa apaixonada por Porto Alegre, apesar de não ter nascido aqui.
Um abraço para todos.
Edição: Ayrton Centeno