Qualquer valor destinado aos gaúchos é por nós interpretado como o que de melhor poderíamos receber
Neste momento em que vemos o Brasil mobilizado para auxiliar as vítimas desta crise em que fomos jogados pela infeliz coincidência que aqui reuniu uma posição geográfica favorável ao desastre climático com a ascensão de políticos negacionistas ecocidas, vale observarmos o que está emergindo em termos de comportamentos humanos e para onde isso pode nos levar.
Primeiro, vamos justificar aquelas frases.
A posição geográfica do RS determina que aqui se encontrem massas de ar frio que ascendem do sul, com massas de ar quente, que descem do Norte. Este choque provoca ventos e chuvas. Com o aquecimento global, com o degelo dos pólos, com a drenagem de banhados, com morte de rios e lagos, o volume de água que cai sobre nós tem sido crescente e já supera os parâmetros a que estávamos acostumados.
Não apenas a ciência, também o senso comum vinham anunciado há tempos que agora se revela no impacto das secas e das cheias impostas ao RS. Acionados pelos fenômenos chamados de La Niña e El Niño, aqueles impactos simplesmente respondem ao ciclo das águas. E em síntese, estão se avantanjando em resposta às ações humanas .
Por isso, com gestores e políticos ecocidas (no RS tem sido difícil separar estas palavras) compromissados com a destruição da legislação ambiental para facilitar a expansão de monoculturas destinadas à exportação, o resultado não poderia ser outro. Retraindo a capacidade de absorção dos solos, aquelas políticas determinaram que o maior volume de água, agora derramado sobre nós, escorra com maior velocidade e violência.
Simples assim: a eliminação da cobertura vegetal permanente, a expansão das lavouras morros acima, os solos compactados e o discursos ufanista do agropop são a expressão da degradação dos serviços ambientais necessários ao desenvolvimento vital das áreas de várzea, agora inundadas. Nisso se apoia a destruição da alegria, da memória, da história e tudo o mais que nossa sociedade vinha construindo, distraída e desorientada pelo discurso mentiroso daqueles grupos políticos.
As inundações destes anos, como as secas que retornarão com a La Niña, traduzem uma nova condição ecossistêmica, erguida pelo aquecimento global com apoio daqueles maus gaúchos, gananciosamente empenhados em fazer sua parte na guerra suicida contra a natureza.
Todos tivemos oportunidade de acessar as informações que anunciavam a tragédia e reclamavam atitudes que não vieram e que poderiam ajudar a reduzir seus impactos. A previsão de recursos destinados pelo governador gaúcho à Defesa Civil, após as 47 mortes causadas pela inundação de setembro de 2023, bem como seu empenho em vestir aquele jaleco e pegar carona nas ações do governo federal, dispensam comentários.
As poupanças e os desperdícios de recursos realizadas pelo atual e pelo ex-prefeito da capital relativamente ao que deveria ser destinado à prevenção de calamidades, diante da atual falta de borrachas e parafusos nos portões da Mauá, do mau estado das bombas que compõem o complexo de proteção às enchentes em Porto Alegre vão no mesmo rumo.
Enfim, deste lado da história emergem os negacionistas de ontem, os estimuladores da degradação ambiental, os arautos da flexibilização de normas protetivas aos bens comuns da natureza. São pessoas que em sua maioria e a um só tempo, tratam de se apropriar do protagonismo e dos esforços da sociedade civil e do governo federal, enquanto externam lamentos sobre o que querem fazer parecer uma catástrofe pontual e inesperada.
Em sua maioria, estes grupos e as redes de mídia sustentadas pelos mesmos interesses, tentam nos convencer de que não há motivo para buscar responsáveis. Aliás, alguns mais afoitos, mas do mesmo naipe, vão além. Transbordam no rumo oposto, dizendo que sim, que existem culpados, e que eles, os ungidos do poder maior, estão aqui para trazer as revelações. A culpa seria do povo. Não porque, enganados, muitos continuam inclinados a votar em golpistas confessos. Mas sim porque, tolerando e apoiando o sincretismo religioso constitucional, teriam permitido a presença de tantas casas de religião afro, que por sua vez estariam despertando a ira divina. Ou, para que não passe desapercebido, porque desatentos teriam permitido que a Madonna e seu público, realizassem, no RJ, um ritual satânico, que se associaria à tragédia gaucha, porque nossos mortos seriam oferendas ao coisa ruim.
Nada mais óbvio que todos estes, os negacionistas, aos oportunistas, os estimuladores do ódio, do racismo e do sectarismo religioso, devam ser responsabiizados e punidos.
E é indispensável que a sociedade brasileira (cada um e todos nós) se oriente pelo melhor, para eliminar este tipo de enraizamento do mal, para conter a degradação do sistema democrático e da civilidade humana, pela raiz. Não faltam exemplos, como mostra até mesmo uma reação de facção do próprio crime organizado, em defesa dos flagelados e contra os aproveitadores da miséria alheia.
Mas devemos nos fixar no cidadão comum. Aqueles que sabemos (pela educação que recebemos dos pais e devemos passar aos filhos), que em não havendo correção dos comportamentos incorretos, haverá desvalorização de atitudes que merecem ser enaltecidas. Por isso, não podemos permitir que os que se omitiram, ou fizeram pelo pior em suas funções públicas, se apropriem dos motivos de respeito e orgulho que neste momento devemos reconhecer como próprios e devidos ao governo federal e à sociedade civil.
E aqui precisamos valorizar os caminhos da civilidade e aqueles que os estão pavimentando, como meio de fortalecer nossa capacidade de ação conjunta, para o tempo que virá.
É sabido que, com a água baixando, surgirão os dramas que hoje mais assustam a todos nós. Milhões de gaúchos com o sistema imunológico deprimido, diante do cenário de destruição que emergirá das águas, com os corpos, com as doenças, precisaremos de lideranças confiáveis, pautadas por um realismo cientificamente sustentado e refratárias os oportunistas e suas fantasias. E precisaremos de ajuda.
Por isso, quero neste espaço prestar homenagem ao que nos comove e emociona nas ações caridosas, acolhedoras, de todos e todas que, sem nada pedir, estão oferecendo seu tempo, sua energia e algo de suas reservas e poupanças, ao povo gaúcho. Eles sabem que aqui existem famílias no limiar do desespero, onde um pacote de farinha, um par de sapatos, um galão de água, um brinquedo para as crianças, faz diferença e traz consigo a energia e a dimensão carinhosa que nos falta nestes dias.
Qualquer valor, que qualquer brasileiro destine aos gaúchos é por nós interpretado como o que de melhor poderíamos receber. Na métrica humana, este melhor equipara uma viagem de férias, para quem pode ir a Europa, às roupas quentes para um filho diante do frio que está chegando. Reconhecemos no prazer dispensado pelos que transferem para nós aquilo que poderia lhes ser a merecida alegria de uma cervejada, a capacidade de conter doenças emergentes desta água vermelha, que carrega, junto a todo tipo de restos, os agrotóxicos que estavam reservados para a safra perdida.
E por isso, nos resulta claro que as manifestações de solidariedade que temos recebido definem o horizonte e alimentam nosso compromisso para com a reconstrução do país que todos merecemos. Não esqueceremos seus gestos nem permitiremos que sejam confundidos com atitudes daqueles que alimentaram a crise atual.
Sairemos desta mais fortes e mais comprometidos com o papel que nos cabe, na luta pela emancipação de nossos povos e de nosso país.
Uma música? Só é seu aquilo que você dá:
Edição: Vivian Virissimo