Rio Grande do Sul

POESIA

O clamor das águas

'Pouca gente acreditou, levou a sério os alertas, inúmeros, de anos... O Lutz tinha toda a razão já desde os anos 1970'

Brasil de Fato | Pelotas (RS) |
"Quem terá a sabedoria de aprender com tanto sofrimento, tanta dor, tanto luto, tanta desfaçatez?" - Foto: Gustavo Mansur/ Palácio Piratini

Águas da vida, sim!
Mas águas em fúria, também.
Ninguém segura.
Ninguém está seguro.
A força das águas é incomparável,
Incomensurável, difícil de deter.
Mas foi previsto, foi anunciado, foi dito.
E ficou o dito pelo não dito ou ignorado.

Pouca gente acreditou,
Levou a sério os alertas, inúmeros, de anos ...
O Lutz tinha toda a razão já desde os anos 1970.
O que aconteceu foi assim:
Haja desmatamentos sem controle.
Haja barragens em todos os rios.
Haja ampliação das áreas de cultivo de
Commodities …
Lavouras de soja e trigo a perder de vista.
E milho, algodão.
Na zona sul, a mata exótica dos eucaliptos, pinus,
Para a celulose – exportável....
Quem há de salvar o Pampa?
E acabaram-se as matas ciliares.
Até o fundo dos arroios ficou assoreado.
Tudo em nome do progresso
Aumento do PIB, da riqueza (de alguns, é claro).

Mas a cobrança vem e com a força das águas.
Elas chegam sem pedir licença.
Turbilhão feroz, nada igual se viu.
E quando as águas descem, elas são democráticas.
Arrasam sem escolher destino, destinatários, proprietários.
Mas sempre quem mais sofre, sabemos quem são ...
A fera ruge sem limites.

Há que salvar vidas, em primeiro lugar.
Há que socorrer, abrigar, alimentar, cuidar com esmero
No possível da hora, da circunstância, do bom serviço social,
Do trabalho coletivo, institucional e voluntário.
Mas o brado das águas é canto de guerra,
Tão maltratadas foram, poluídas, estreitadas,
Desrespeitadas em sua placidez vital.
A fúria das nuvens, do céu, dos ventos
Se junta às águas de rebelião.
Quem a detêm? Ninguém, pelo visto.

Resta correr atrás, salvar, organizar, abrigar, mitigar ...
Não há que poupar, economizar, reter (na bolsa) numa hora dessas.
E depois, a ingente tarefa de reconstruir, reorganizar a vida.
Que não se lamente a frieza, a irresponsabilidade
De quem governa há décadas.
Lideranças foram eleitas democraticamente,
Legitimadas pelas urnas, pela maioria.
Mas parece que falharam, submissas a
Interesses outros, à ordem do Capital,
Das finanças, do lucro fácil, que a tudo devora
Implacável e soberano. Sempre desumano!
Desgoverno é o que temos.

E as águas descem, se avolumam,
Destroem, arrasam tudo o que vem pela frente.
As águas clamam, rugem como fera acuada,
Menosprezada, ignorada na sua força maior.
Quem ouvirá este clamor, a razão dessa fúria?
Quem terá a sabedoria de aprender com tanto sofrimento,
Tanta dor, tanto luto, tanta desfaçatez?
Quem? Quem?

Há que apostar na Esperança, sim.
Mas que Esperança semear no que virá?

Pelotas, maio de 2024

* Roberto E. Zwetsch, pastor luterano, professor associado de Faculdades EST, São Leopoldo, membro do GP Identidade Étnica e Interculturalidade. Mora em Pelotas: [email protected]

Edição: Katia Marko