Rio Grande do Sul

Coluna

Águas e solidariedade

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"Cabeças, mentes e corações vivem despedaçados de dor, sofrimento, tristeza com mais de 100 pessoas mortas e centenas de desaparecidos" - Foto: Carlos Messalla
O capital e o mercado não podem mais continuar destruindo a vida e a natureza

Os tempos urgem e rugem.

Águas alimentam e dão vida. Águas matam. São os tempos no Rio Grande do Sul em maio de 2024. Mais de 400 dos quase 500 municípios do Estado está sofrendo com temporais, chuva intensa, enchentes, deslizamentos de terra, enxurradas, estradas interrompidas, casas aos pedaços, lavouras aos frangalhos. Cabeças, mentes e corações vivem despedaçados de dor, sofrimento, tristeza com mais de 100 pessoas mortas e centenas de desaparecidos. Em Santa Emília, Venâncio Aires, interior do Rio Grande do Sul, na casa da família onde estou provisoriamente alojado, choveu mais de 600 mm em poucos dias, o correspondente a muitos meses de chuva.

Um quadro jamais visto e vivido por ninguém, em intensidade muito maior do que os já trágicos acontecimentos de agosto/setembro de 2023 e de janeiro de 2024. Porto Alegre está debaixo d´água, a Rua da Praia, a mais conhecida da capital gaúcha e onde fica a Esquina Democrática, voltou a ser de fato e na prática Rua da Praia, mesmo estando hoje a centenas de metros do rio Guaíba. A Arena do Grêmio e o Beira Rio do Inter estão inundados, hospitais fecham as portas pela invasão das águas, em bairros inteiros só se anda de barco.

Cidades e municípios, como São Leopoldo, Canoas, Eldorado do Sul, Cachoeirinha, na Região Metropolitana, Sinimbu, Lajeado, Rio Pardo, Candelária, Cruzeiro do Sul, Roca Sales, Muçum, Encantado, nos Vales do Rio Pardo e do Taquari, entre muitos outros, estão completamente devastados. No ditado popular, não sobrou pedra sobre pedra.

Não há transporte público nem condições para viajar para lugar nenhum. O Trensurb, trem que liga Porto Alegre a Novo Hamburgo, está parado. O caos: a rodoviária de Porto Alegre sob água, fora de ação, aeroporto Salgado Filho fechado em suas operações, bairros inteiros, de grandes hospitais, sem água para usar e beber, sem energia elétrica, sem internet, sem comunicação.

Os relatos, áudios e vídeos são inúmeros e impressionantes, como os da ex-conselheira Tutelar e companheira Loiva Dietrich, moradora do Bairro Humaitá em Porto Alegre, atrás da Arena do Grêmio, resgatada pelo Exército e Bombeiros, com água no pescoço e, felizmente, encaminhada para um abrigo em Cachoeirinha, Região Metropolitana.  

No meu caso, estou ilhado há mais de semana, depois de uma viagem perigosa (ver meu último artigo, ´O CAOS ESTÁ AO LADO DA PORTA´), em Santa Emília, interior de Venâncio Aires, casa da família, louco para ir a Porto Alegre, abraçar as pessoas e me somar direta e fisicamente aos esforços de enfrentar a dor, a morte, o sofrimento. Mais de semana depois do início das chuvas, não há meios de ir de Venâncio Aires a Porto Alegre, a pouco mais de 100 quilômetros: estradas e pontes interrompidas, estradas alagadas e sob montanhas de terra em muitos lugares. Resta acompanhar os acontecimentos à distância, tentar ajudar na informação e no apoio solidário, com análises, orações e tudo mais que possa, de alguma forma, contribuir, ajudar a aliviar e diminuir o sofrimento e seu alcance. 

Tragédia, caos. Não há outras palavras para definir os fatos.

Só há uma coisa que salva o Rio Grande do Sul e o povo gaúcho e, por extensão, o povo brasileiro: a solidariedade. Nunca se viu nada igual. Movimentos sociais e populares, movimento sindical, diferentes igrejas e religiões, Pastorais Sociais, ONGs, escolas e Universidades, comunidades, milhares de voluntárias-os, médicas-os, enfermeiras-os construíram em poucos dias uma Rede de Solidariedade jamais vista em momento algum, dando expressão concreta ao NINGUÉM SOLTA A MÃO DE NINGUÉM, surgida em meio ao neofascismo dos últimos anos e à pandemia do coronavírus. São Sementes de Solidariedade.

Milhares de pessoas ajudam nas Cozinhas Solidárias e Comunitárias e em todos os espaços possíveis e imagináveis, com alimentos, móveis, roupas, depósitos em contas bancárias e todas as formas possíveis e inimagináveis para alimentar quem está com fome e resgatar quem está ilhado ou perdeu tudo. Dezenas de milhares de pessoas, militantes, sonhadoras-es, que ainda existem muitas-os, fiéis, pessoas em geral saem de casa, vão às ruas, às vielas, às comunidades, às periferias. Organizam as montanhas de alimentos que chegam, distribuem os sopões, fazem as marmitas, acolhem, dão palavras de consolo, dão abraços, riem junto quando possível, choram junto a maioria das vezes, mostram caminhos.

Não há limite para a solidariedade e o amor. Não há família, ou trabalho, ou sono, ou cansaço que segurem mãos, braços, a cabeça e o coração de quem ajuda. Estão disponíveis, 24 horas por dia, manhã, tarde, noite, madrugada, sem parar. O povo pobre ajuda o povo pobre, é a solidariedade de classe de jovens, estudantes, mulheres, professoras-es, funcionárias-os públicas-os, a solidariedade ao vivo e em cores.

Os tempos urgem e rugem, sim. Mas pode-se dizer: o Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo ainda têm jeito. ´Um outro mundo ainda é possível´, cada vez mais urgente e necessário.

Ficam a pergunta e o desafio: como manter viva a solidariedade? Como aquecer corações o tempo todo e no futuro? Como garantir que ninguém solte a mão de ninguém nos próximos tempos?

A Casa Comum merece cuidado, muito cuidado, todo cuidado do mundo. Talvez mais que cuidado. Merece apoio, carinho, ternura. O capital e o mercado não podem mais continuar destruindo a vida e a natureza. A ganância não pode mais dominar as relações humanas, econômicas, sociais e políticas. A Sociedade do Bem viver, da gratuidade, do bem querer, da entrega uns aos outros, umas às outras e à natureza está clamando, está gritando, na fé, na caridade e na esperança. Para que as águas não tomem conta das vidas, não ocupem o planeta com mortes, mas sejam fontes de alegria, sobrevivência, sonho.

E que as mamães, cujo dia celebramos domingo, doze de maio, possam amar filhas e filhos com ternura, possam ver crescer netas e netos sem angústias. E mulheres, homens, jovens, crianças e a humanidade possam alimentar todas e todos solidariamente com o pão nosso de cada dia e com as águas da fé, da sabedoria, da paixão, da amorosidade.

VIVA AS MAMÃES! VIVA A VIDA! VIVA O ESPERANÇAR!

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko