A natureza não pode ser desastrosa, pela simples razão que sequer é uma coisa palpável
Crise climática; emergência climática; aquecimento global; catástrofe ambiental. Os nomes são muitos, mas eles podem levar a enganos. Vamos ser diretos, para começar: não existem "desastres naturais". O que existem são desastres sociais. A natureza - esta "entidade" misteriosa - não pode ser desastrosa, pela simples razão que sequer é uma coisa palpável. Natureza é uma abstração; não passa de um conceito. Um conceito com o sério defeito de não se referir diretamente a uma coisa específica existente. Por fim, a natureza não pode ser desastrosa porque não é um sujeito. Pessoas podem cometer atos desastrosos. Conceitos, abstrações, não.
Então, o que estamos acompanhando recentemente no Rio Grande do Sul é um desastre social, derivado da incapacidade de agir frente a fenômenos que a ciência e a técnica atual são capazes de prever. Aliás, nem é preciso usar a técnica atual para saber que rios, em alguns períodos, têm maior volume de água e extravasam. Não foi sabendo disso que toda uma civilização foi erguida? O antigo Egito não localizava suas moradias na área alagável do Nilo; deixava estas regiões para serem fertilizadas pelas cheias e as usavam para produção de alimentos.
Como é cada vez mais frequente que as inundações aconteçam em maior intensidade e com maior extensão de danos e perdas, as moradias são as primeiras a serem afetadas. A Organização das Nações Unidas define inundação em sua Estratégia Internacional das Nações Unidas para a Redução de Desastres (UNISDR) como um processo de risco natural associado, de um lado ao excesso de água e, de outro, a dificuldade ou impossibilidade de escoamento adequado de certas áreas, urbanas ou não. Neste sentido, nossa geração vive um momento de expansão dos eventos climáticos extremos. No Rio Grande do Sul as chuvas intensas, que sempre existiram, mas perigosamente mais frequentes, nos avisam que já passou da hora de olhar com atenção e respeito às mudanças climáticas. Ao mesmo tempo, vivemos há um longo tempo de uma preocupante ausência de planejamento.
Eventos como estamos presenciando agora, na verdade, são a expressão da ausência de Estado e de planejamento. São o resultado de décadas de doutrinação neoliberal, que demoniza qualquer investimento social do Estado como “custo”, “desperdício de recursos”, etc. É por isso, inclusive, que a principal disputa sobre a revisão do novo Plano Diretor de Porto Alegre acaba ficando sobre a liberação de construções e de altura de edificações. O Estado, porque desmontado pelos últimos governos, é incapaz de investimentos sociais e em infraestrutura. E investimentos sociais significam também ter equipes e equipamentos para lidar com situação e eventos extremos. Significa ter “inteligência”. Uma pergunta simples: depois dos eventos de setembro passado no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre, o que os governos do Estado e a prefeitura de Porto Alegre fizeram para mitigar e/ou se preparar para outros eventos parecidos? Em setembro de 2023 não ficou evidente que havia problemas nas comportas do muro da Mauá? Em setembro não se viu as falhas nas máquinas e bombas do sistema para retirar a água do Centro e do sistema de abastecimento de água? O que foi feito de lá para cá? Inteligência é isto: usar as informações prévias para aprender com as falhas e consertá-las. Portanto - e como diz o dito popular - persistir no erro não é burrice? Ou é desculpa para privatizar depois, dizendo que o Estado não consegue “resolver”?
O que a moradia tem a ver com estas questões? Na verdade, tudo. Onde estão localizadas as moradias mais atingidas pelas chuvas e inundações severas? Quem habita estas moradias? Já é um dos pontos mais pesquisados e demonstrados com uma profusão de dados há muito tempo: existe uma coincidente relação entre raça/etnia e renda de quem habita áreas ambientalmente vulneráveis e em situação de risco. Assim, a vulnerabilidade social é também espacialmente delimitada. E as moradias mais precárias e populares são também as ambientalmente mais suscetíveis a desastres.
O evento atual, por ter sido extremo, atingiu desta vez não apenas os mais pobres e vulneráveis. Mas, mesmo assim, é nítido que atingiu desigualmente a cidade, afetando, em maior proporção, população com renda menor. Isto pode ser visto tanto na escala metropolitana quanto interna às cidades. Em Porto Alegre e Canoas, por exemplo, a maior parte dos bairros alagados são de populações com renda inferior. Isto pode ser visto no mapa que acompanha este artigo: nenhuma das regiões com maior renda da cidade foi atingida diretamente e alagada. Quando se olha os dados de renda na Região metropolitana, vemos que Eldorado do Sul, que teve quase 100% de sua área alagada, não está entre os municípios com maior renda média. Voltando ao exemplo de Canoas: No oeste da cidade (distritos Noroeste e Sudoeste), onde estão os bairros mais afetados e inundados, bairros como Mathias Velho, Industrial, Mato Grande e Olaria apresentavam, em 2010 (últimos dados disponíveis), renda média domiciliar de menos de R$ 2.000,00. Voltando à Porto Alegre: a zona norte, região com maior extensão de área inundada, tem Sarandi, com renda média mensal domiciliar de 2,64 salários mínimos (SM); Humaitá, 3,90 SM; Navegantes, 3,53 SM. A título de comparação, Três Figueiras, não atingido pelas cheias, tinha renda de mais de 17 SM (novamente aqui, dados do Censo 2010). Na zona sul de Porto Alegre, novamente o padrão se repete: os bairros mais atingidos não são os mais ricos.
Uma primeira lição: podemos começar a mitigar e combater os efeitos mais perversos das mudanças climáticas com soluções que já temos desde sempre: retirar as pessoas de áreas de risco; construir moradias adequadas e bem localizadas. Não só o Observatório das Metrópoles, mas muita gente ao redor do Globo que trabalha e pesquisa sobre habitação repete há muito tempo: a localização das moradias, principalmente das Habitações de Interesse Social, é um dos principais fatores para a construção de sociedades mais justas e menos violentas. Por exemplo, é possível ter conforto térmico usando soluções construtivas que minimizem a necessidade de uso de ventiladores e ar-condicionado no verão. O resultado social, se isto for feito em grande escala, é menor necessidade de geração e consumo de energia, o que diminui a emissão de gases responsáveis pelo aquecimento global. Outro exemplo: moradias bem localizadas diminuem a necessidade de deslocamento em veículos. Menos deslocamentos em veículos significa, novamente, diminuição de gastos com combustíveis e menor produção de emissões poluentes. No mesmo sentido, repetimos aqui o que já foi comentado em colunas anteriores: está mais do que na hora de também se pensar em políticas de estímulo ao uso e ocupação da imensa quantidade de imóveis vazios. O mesmo raciocínio se aplica: se mais gente mora em regiões estruturadas, menos deslocamentos, menos emissões, cidade verdadeiramente mais justa e saudável.
Portanto, não é preciso reinventar a roda, ainda que seja impossível daqui para frente o planejamento urbano e metropolitano não levar em consideração as variáveis ambientais. Mas se efetivamente usarmos os instrumentos de planejamento já disponíveis, podemos construir cidades mais preparadas para enfrentar eventos extremos. Está na hora de recuperar o Estado da mão dos neoliberais. Não porque eles sejam liberais, mas porque a consequência da ausência de Estado e políticas públicas é que é o verdadeiro desastre. É só olhar em volta.
* Mario Leal Lahorgue é professor do Departamento de Geografia UFRGS e pesquisador do Observatório das Metrópoles.
** Fernanda Jardim é doutoranda do programa de Pós-graduação em Geografia UFRGS e pesquisadora do Observatório das Metrópoles.
*** Este é um artigo de opinião e a visão do autor e da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo