O último poema
‘Enquanto me davam a extrema-unção,
Eu estava distraído...
Ah! Essa mania incorrigível de estar sempre pensando noutra coisa!’
Se vivo fosse, o que diria Mario Quintana de Porto Alegre neste momento? Ele não poderia ir para os seus lugares favoritos. Isso é certo, já que a vida dele se concentrava na área central. Estaria passeando com alguma das suas amigas que tanto foram 'cuidadoras' do poeta ou estaria pensando em algum poema, alguma frase ou apenas lamentando do seu berço eterno, que é Porto Alegre. Entre seus pensamentos sobre chuvas e seus efeitos, ele teria feita essa, sem dúvida:
'Os guarda-chuvas perdidos… onde vão parar os guarda-chuvas perdidos? E os botões que se desprenderam? E as pastas de papéis, os estojos de pince-nez, as maletas esquecidas nas gares, as dentaduras postiças, os pacotes de compras, os lenços com pequenas economias, onde vão parar todos esses objetos heteróclitos e tristes? Não sabes? Vão parar nos anéis de Saturno, são eles que formam, eternamente girando, os estranhos anéis desse planeta misterioso e amigo.'
Mario Quintana vivia no mundo da lua. Não cumprimentava, não atendia telefone, não respondia perguntas, raramente recebia visitas ou atendia leitores. Estava sempre absorto e perdido em algum espaço. Sentava, olhava para as baforadas do seu infinito cigarrinho sem filtro e pensava em algum poema, poesia ou qualquer coisa. Às vezes ria gostosamente, fartamente, um espanto para toda a redação do Correio do Povo. Sentado perto dele, uns três metros, na editoria de Esportes, Quintana era um mistério para mim. Tinha alguns dos seus livros espetaculares na minha pequena biblioteca e não imaginava que aquele grande poeta, frasista de mão cheia, um gênio, era tão enigmático, impenetrável, um cara que viajava sentado, olhando para o teto.
Os anos de 1970 e início dos 1980, até o Correio entrar em parafuso financeiro em 1983, Quintana era, para mim, um ser de outro planeta. Não era mudo, mas falava pouco e seletivamente naquele grupo de intelectuais do caderno cultural do jornal. Diziam que era apaixonado pela atriz, escritora, poeta, roteirista e palestrante Bruna Lombardi. Só diziam. Nunca se ouviu da boca dele. Tinha algumas amigas no mundo jornalístico. Graça, Tânia, Baiana, Núbia, Laila, Dulce e muitas outras confabulavam com o poeta e devem ter ouvido até algumas confidências. Não era um Don Juan, como alguns diziam, mas era atencioso e carinhoso com as mulheres.
Neste 5 de maio, quando se completam 30 anos da morte de Mario Quintana, aos 87 anos de idade (nasceu em Alegrete em 30 de julho de 1906 e morreu em 1994), ocorrerão algumas homenagens pela cidade e pelo Rio Grande afora ao poeta, autor de 26 livros, tradutor de mais de 130 obras de gente famosa do mundo da literatura mundial, e jornalista. Com 13 anos veio para Porto Alegre e estudou no Colégio Militar de 1919 a 1924. Poderia, quem sabe, seguir a carreira e chegar a ser um general e presidente da República, como alguns que por ali passaram e chegaram a tão altos postos da nação.
Poderia também ter se tornado farmacêutico. Em 1925 voltou para o Alegrete e se tornou um trabalhador de farmácia. Mas não dava para o negócio. Escrevia poesias, pensava, meditava, criava frases, tinha resposta para tudo no seu jeito tímido ou acabrunhado, como afirmam alguns dos seus biógrafos. Em 1926 voltou para a Capital e trabalhou no Diário de Notícias, falecido jornal do Grupo Diários Associados S/A, que ainda tem alguns meios de comunicação pelo país, mas anda mais para lá do que para cá (Correio Braziliense, Estado de Minas, por exemplo, são ainda do conglomerado, que já foi o maior do país). Depois foi para a Revista Globo (1929-1967), onde se destacou como poeta e tradutor. Tinha aprendido francês com seus pais e, como se sabe, francês era a língua de grandes escritores e a mais apreciada da literatura mundial.
Ao mesmo tempo, publicava poesias e textos curtos no Correio do Povo. No jornal, Quintana encontrou o seu lugar, a sua praia para criar e ficou um bom tempo por ali – onde o conheci. Não dava muita bola aos jovens de 20/30 anos que trabalhavam no local. Alguns cabeludos, como eu, e com roupas multicoloridas. Na época o Correio era mais sisudo do que é hoje. Então, a gente se comportava. E os velhinhos, como Arquimedes Fortini, Lourival Vianna e Silva, Paulo Moura, Adail Borges Fortes, Isnar Ruas, Jaime Copstein, Antonio Hohlfeldt, Ney Gastal, Paulo Fontoura Gastal e tantos outros nos davam apoio, tapinhas nas costas e palavras estimuladoras. Quintana era o avesso da coisa. Estava no seu mundo, como diz a sua frase com o título Ela: ‘Mas que haverá com a Lua, que sempre que a gente a olha, é com um novo espanto?’ Na casa dos Caldas sempre foi tratado com respeito pelo dono, Breno. Era protegido, acarinhado e ali publicou centenas de poesias e suas frases de ditos e desditos da vida, como esta: ‘Os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não leem.’
Pais e solidão
Em 1926 e 27, Mario Quintana perdeu os pais e ficou solitário no mundo. Nunca se casou ou teve filhos. Era católico por influência familiar, mas não se tem notícia de que ia a igreja ou ouvia sermões. Desde jovem, Mário Quintana já morava em hotéis ou pensões. Foi hóspede do Hotel Majestic, no centro histórico de Porto Alegre, de 1968 até 1980. Desempregado e com pouco dinheiro, Mário foi despejado e alojado no Hotel Royal, propriedade do ex-jogador Paulo Roberto Falcão – hoje transformado em Edifício Quintana na rua Marechal Floriano. Nos últimos anos de vida foi assessorado pela sobrinha Elena Quintana, um verdadeiro anjo da guarda. O Hotel Majestic, onde morou por 12 anos, foi transformado na ‘Casa de Cultura Mário Quintana’.
ABL
Mario Quintana nunca ocupou uma cadeira da Academia Brasileira de Letras (ABL), mas tomou conta de um espaço privilegiado na poesia brasileira. Ele tentou três vezes entrar para a ABL e, convidado para uma quarta, não aceitou. Sempre perdeu para políticos e ministros. Ele confessou que não tinha ‘saco’ para chás e visitas para conquistar votos. Preferia café preto, quindim e cigarro no bar da Dona Maria no Correio do Povo.
‘Tímido em rua, mas nunca tímido em poesia’, Quintana passava a impressão de ser antipático. Na Praça da Alfândega, que tanto frequentava, não dava a mínima para quem ousava sentar ao seu lado, salvo raras exceções. Sentado, estava olimpicamente no vazio, pensando sabe-se lá o quê, mas hoje, tenho certeza, estava poetando as suas próximas letras que iriam para a eternidade. Hoje, há ali uma estátua sua, com Carlos Drummond de Andrade.
Para mim, este era o Quintana da redação e das ruas. Um gênio do Alegrete. Do mundo. Morreu de insuficiência cardíaca e respiratória no Hospital Moinhos de Vento.
Uma das primeiras poesias
Soneto II
‘Dorme, ruazinha... É tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos...
Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos"...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...
Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
os de minha futura assombração...
Uma frase sobre os poetas
“Desconfia da tristeza de certos poetas. É uma tristeza profissional e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas.”
Quatro outras frases
‘Por acaso me surpreendo no espelho: quem é esse que me olha e é tão mais velho do que eu? Que me importa! Eu sou, ainda, aquele mesmo menino teimoso de sempre.’
‘É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão que foi escrito pela primeira vez.’
‘Se dizem que escreves bem, desconfia. O crime perfeito não deixa vestígios.’
‘Intruso: indivíduo que chega na hora em que não devia. Exemplo: o marido...’
Uma das últimas poesias
Poeminha do Contra
"Todos esses que aí estão
Atravancando o meu
caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!"
* Jornalista.
Edição: Katia Marko