Rio Grande do Sul

ENCHENTE HISTÓRICA

De quem é a culpa pela fúria dos deuses e da natureza?

'O sofrimento dos gaúchos com a força das águas. Pena mesmo é que o Rio Grande está cheio de gente rica que nem se coça'

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Não dá para dimensionar o volume da catástrofe das águas. Dezenas de mortes, isolamento de centenas de cidades, alagamentos em todas as cidades, inclusive na Capital" - Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Nem todos os deuses de todas as crenças conseguem fazer as águas celestiais darem uma trégua. Sabemos todos que daqui alguns dias vai passar, o sol voltará a brilhar, as roupas secarão, a umidade vai embora, as pessoas (nem todas, é verdade) voltarão para as suas casas e a vida, quem sabe, voltará a uma normalidade ruim, péssima ou mais ou menos tal os estragos que ficarão por todos os cantos do Rio Grande do Sul.

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Não dá para dimensionar o volume da catástrofe das águas. Dezenas de mortes, isolamento de centenas de cidades, deslizamentos, quedas de barreiras, alagamentos em todas as cidades, inclusive na Capital. Se alguma se salvou, peço perdão por inclui-la aqui neste momento de desânimo, com efeitos na alma e no corpo, de quase toda a população.

Pontes levadas pelas águas como se fossem penas de aves. Não há um número exato de tantas pontes que se foram. Outras ficaram encobertas. Escolas, hospitais, casas, móveis, bens de pobres e ricos, mais de pobres do que de ricos, mortes de jovens e idosos, desaparecidos aos milhares, dor, lamento, agonia, doenças e desespero. Sem contar falta de energia e de água potável, sem contar a ausência de internet e telefone celular. Estamos ilhados, muitos sem comunicação nenhuma.

Alguém escolheu um cantinho do Brasil para desabar neste momento com tanta fúria. A hora é de pensar nas vidas que estão em cima de telhados, perdidas, isoladas, sem comida, sem remédio, sem água, sem nada. Muitas estão amontoadas em ginásios, escolas, igrejas. Mais do que triste, é trágico, mais do que doloroso, estamos em uma guerra implacável contra tudo e todos. Ninguém tem fuzil, granada, míssil. Só água pela frente, pelos lados, por cima. Até para se locomover está ficando difícil. O abastecimento com combustível começa a faltar. E de comida também.

Mas tem solidariedade, empatia, resiliência e amor espalhados por aí. Voluntários surgem de todas as idades para ajudar quem está na pior, há mobilização para ajudar com mantimentos, roupas, colchões, lençóis e cobertas. Pena mesmo é que o Rio Grande está cheio de gente rica que nem se coça. Alguns fazem uma ação ou outra, sempre pedindo que os clientes e consumidores paguem as contas. Clubes de futebol e jogadores milionários ajudam, cedem espaços. Mas pedem que os torcedores, nem tão poderosos assim financeiramente, colaborem.

:: As águas chegaram a Porto Alegre e as entradas e saídas serão fechadas ::

Pior enchente desde 1941, segundo a Defesa Civil do Estado, a hora é de salvar vidas, antes de reparar estragos, retirar pedras e entulhos das estradas, consertar pontes, construir novas casas, dar ânimo e força psicológica para tantos desabrigados. Carinho ajuda, mas nesta hora resolve apenas parcialmente. Hora destes cidadãos que se dizem do bem tirarem o paletó e a gravata e botar a mão na massa. Precisamos salvar as pessoas da derrocada total.

A imprensa tem feito alguma coisa, noticiando, orientando, dando dicas para escapar daqui e dali para sobreviver à força das águas. Mas alguns derrapam na sua ideologia e chegam a culpar A ou B dos governos que estão aí, como se eles fossem poderosos para controlar estes fenômenos. Não é hora de jogar pedra na Geni. Deixe para depois. Primeiro, salve-se e salve quem puder. Ajude e deixe-se ajudar.

De quem é a culpa disso tudo? Dos efeitos climáticos implacáveis? Nós todos, sem dúvida. Produzimos muito lixo, descartamos mal, agredimos e poluímos a natureza, o ar, os rios, os mares sem dó e nem piedade. Estamos fedendo de tanta coisa que jogamos por aí. A resposta aí está. Uma hora é longas estiagens, noutras chuvas torrenciais. Meio ambiente vive levando bombas de hidrogênio.

Árvores são arrancadas em nome da selvageria do dinheiro, os rios estão apodrecendo pelos dejetos industriais e domésticos. Planos urbanos dão prioridades a prédios descomunais, praças são canceladas do nosso cotidiano, a vida vai indo para o caos. Vivemos enlatados, quase sem ar para respirar, morrendo aos poucos, sofrendo a inclemência dos deuses de todas as crenças e da mãe natureza.

* Jornalista

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.


Edição: Katia Marko