Nación Pachamama é parte dos movimentos 'ensoñadores' do Bem Viver
Engolimos rápido o café preto para buscá-lo na estrada. De longe já se via sua estatura arqueada e robusta, sua blusa vermelha escarlate e sua pele terra negra.
Era sempre um entusiasmo estar perto desse amigo. Enquanto o levávamos de carro, a conversa já se estendia sobre os acontecimentos da semana, a volta às aulas na escola agrícola onde ele leciona, o efeito das chuvas nas cebolas, a luta...
De nossa parte, contávamos que havíamos feito quase tudo como ele havia pedido, preparado os canteiros, usado os troncos úmidos, e tentado vencer as formigas "mas são mais duras de vencer que o capitalismo, Seu Marino!".
Ao chegar no Vale Sagrado, nossa comunidade de Nación Pachamama em Pelotas, seu Marino [Nogueira] entrou lento como de costume, sorrindo, falando palavras doces, nos contagiando com seu calor humano.
Tomamos um café da manhã demorado e logo nossas sementes estavam entre as canecas. Pedimos que ele desse sua benção. Com as mãos estendidas, ele puxou os votos, a oração e juntamos nossos sonhos a essas pequeninas Crioulas que vem percorrendo de mãos em mãos os caminhos da resistência.
Logo estávamos em um pequeno mutirão, escutando o barulho das enxadas cavando a terra seca. E sob o sol soltávamos alaridos e músicas das trincheiras para ter mais energia pro trabalho. Quem já experimentou trabalhar a terra assim, sabe que ali, também é quando se pensa melhor, ali a terra parece soltar inspirações que valem a pena.
Seu Marino falou de solidariedade, que gosta é disso, vir e trabalhar por companheirismo, e se somou a nossa conversa um pássaro, uma rajada... vieram as piadas, galinhas-d'angola, lembranças das fogueiras andinas para proteger as chacras das geadas, mais silêncio e suor numa sensação clara de harmonia.
Um ritual que acontece no preparo da terra é extirpar as mentes complexas. Ali rimos debochando do quanto o pessoal tecnicista, quando nos veem assim, logo querem vender a ideia das máquinas, da rapidez, da eficiência... Não podem ver essa perda de tempo do trabalho manual. Mas eles não sabem a graça que tem de suar em mutirão, de avançar lento, mas avançar lindo.
Faz algum tempo que nossa amizade vem crescendo. Compartimos noites de causos e poemas, tardes de mates de carijo bom. E nas conversas, o tema transversal: como cuidar da desafiadora e delicada vida comunitária.
Há tantos desafios e belezas nesse coração da revolução. Viver junto, aturar o outro, manter, seguir, amar os diferentes... vencer as armadilhas, essa separatividade que as vezes assola os movimentos sociais, como uma praga que chega e incentiva os amigos a viverem cada um por si, debilitando... Por isso a necessidade do Cultivo da Memória, lembrar os anti-heróis, "lembrar Darcy Ribeiro" dizia Marino.
Assim como o MST, movimento do seu Marino, Nación Pachamama é parte dos movimentos "ensoñadores" do Bem Viver. Há um longo caminho. Descobrimos até agora, tateando no escuro não-saber, que nos apoiamos na poética comum, na beleza mais singela para seguir...
Essa devoção a um entardecer, devoção a um beija-flor que chega no galpão, devoção ao que se doa ao outro. Um calo de enxada, as crianças se apaixonando por plantar, uma conversa como entre vizinhos.
A poética de Pachamama segue livre no simples como cantava Facundo Cabral, cancioneiro argentino:
"Me gusta la gente simple
Que al vino le llama vino
La que al pan le llama pan
Y enemigo al enemigo
La que se da por entero y no tiene intermediarios
La que comparte conmigo el respeto a los milagros
Me gusta la gente simple
Que se levanta temprano
Porque hay que limpiar la calle
Pintar el frente al mercado
Bajar del camión la fruta
Repartir los telegramas
Servir el café, la sopa, pescar
Embolsar la papa
Cortar el árbol preciso para hacer una guitarra
Con la que un día el cantor, caminará por la patria
Contando la gente simple
Que sin ella no hay nada
Ni siquiera la milonga
Que en el mundo me declara”
Confira entrevista com Marino Nogueira
* Esme Molina, moradora da Comunidade Vale Sagrado
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko