Rio Grande do Sul

INVESTIGAÇÃO

Pousada Garoa: DPE apura violações de direitos humanos, parlamentares pedem CPI e prefeitura anuncia vistoria

Pousada onde 10 morreram em incêndio integra rede conveniada à prefeitura para abrigar pessoas em vulnerabilidade social

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |
Incêndio que matou 10 pessoas e deixou outras 15 feridas na Pousada Garoa é o mais letal da capital gaúcha desde 1976 - Foto: Luís Gomes/Sul21

Após o incêndio que matou 10 pessoas e deixou outras 15 feridas na Pousada Garoa, que tem convênio com a Prefeitura de Porto Alegre para receber pessoas em situação de vulnerabilidade social, investigações foram abertas. A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS) vai apurar danos coletivos e violações de direitos humanos e o Executivo municipal vai fazer vistorias nos locais contratados para o serviço de abrigo. Além disso, parlamentares pedem a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores.

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Conforme informado pelo Corpo de Bombeiros, a pousada localizada entre a Rua Garibaldi e a Doutor Barros Cassal não possuía alvará nem Plano de Proteção contra Incêndio (PPCI). No entanto, a Prefeitura de Porto Alegre afirmou que o PPCI foi apresentado no processo licitatório. O incêndio é o maior em número de mortes em Porto Alegre desde 1976.

A bancada do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pede abertura de uma CPI para investigar a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) em Porto Alegre. A deputada federal Daiana Santos (PCdoB) ingressou com uma representação no Ministério Público solicitando instauração de inquérito civil para apuração das responsabilidades do prefeito Sebastião Melo (MDB) pelo ato de improbidade administrativa.

A rede da Pousada Garoa tem como sócio-administrador André Luis Kologeski da Silva. O serviço é prestado ao município de Porto Alegre desde junho de 2021, quando a prefeitura abriu edital para credenciar estabelecimentos hoteleiros, pousadas, pensões e hostels para prestação de serviços de hospedagem que atendessem a Fasc.

Segundo reportagem do Matinal News, André foi condenado em dois processos por estelionato. Em 2021, ele enganou três pessoas com anúncios de aluguel cobrando cauções de um apartamento que não lhe pertencia. As vítimas do golpe dapositaram o valor na conta de André, que sumiu e não entregou as chaves.

“A gente mora numa ratoeira”

Na sexta-feira (26), dia em que ocorreu a tragédia, a DPE/RS realizou reunião com a participação de parlamentares, movimentos sociais, vítimas, familiares e pessoas em situação de rua. O objetivo foi levantar informações acerca do funcionamento da rede Pousada Garoa e outras conveniadas com a Prefeitura de Porto Alegre.

A curadora judicial Vanessa Canabarro disse que vários de seus curatelados preferem morar na rua a ir para as pousadas Garoa. E o relato dos moradores foi no mesmo sentido. De acordo com eles, na rua existe segurança, o que a Garoa e outras pousadas não oferecem.

“A gente dá graças a Deus que saiu da chuva, mas a gente mora numa ratoeira”, afirmou Carlos César da Costa Silva. Conforme o morador, não há manutenção da estrutura e as portas são trancadas à meia-noite, o que torna o local insalubre e, nas suas palavras, um cárcere.


Participante da reunião na DPE mostra capa de edição do jornal Boca de Rua de 2022 sobre incêndio em outra unidade da Garoa que fez uma vítima fatal / Foto: Francielle Caetano/ASCOM DPE/RS

Ainda de acordo com relatos, a pousada não teria controle de quem está hospedado ou em visita. As janelas são fechadas e as portas possuem cadeados. Os moradores são proibidos de ter inclusive ventiladores, pelo risco de incêndio.

Outros depoimentos foram no sentido de lembrar que o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) não prevê convênios com pousadas e que a população em situação de rua deve ser ouvida e fazer parte da fiscalização desses locais, o que não existiria em Porto Alegre.

A coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) da DPE/RS, Alessandra Quines Cruz, disse que, a partir dos relatos colhidos, foram oficiados de imediato os principais órgãos para obter os dados faltantes. "Trabalharemos em medidas reparatórias para as vítimas e também de forma preventiva para garantir o respeito aos direitos humanos, especialmente para as pessoas em situação de rua”, afirmou.

Prefeitura anuncia vistorias

No mesmo dia, o prefeito Sebastião Melo (MDB) concedeu coletiva de imprensa, quando sinalizou que uma força-tarefa coordenada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social vai iniciar vistorias nesta segunda-feira (29).

“Determinamos que se averigue a situação de todos os abrigos e pousadas para encaminhamento de medidas em 10 dias. Também abrimos Investigação Preliminar Sumária sobre o contrato com a empresa vencedora da concorrência”, disse Melo, que decretou três dias de luto oficial em Porto Alegre.

O secretário de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, contou que a prefeitura possui 320 vagas na rede Garoa. A unidade da Farrapos, onde houve o incêndio na sexta-feira, tinha 30 vagas, das quais eram 16 contratadas pelo município.

Desde 2021, o Executivo já assinou sete contratos com o estabelecimento, totalizando um valor de R$ 9.199.028,46. O contrato atual é no valor de R$ 2.705.379,96. Foi assinado em dezembro de 2023, com validade até dezembro deste ano.

Jornal é impedido de entrar na coletiva

Integrantes do jornal Boca de Rua foram impedidos de entrar na coletiva de imprensa convocada pela prefeitura. O Boca é Rua um jornal de capital gaúcha feito por pessoas em situação de rua desde 2000.

Em 2022, tinha dado capa a um incêncio em outra unidade da Pousada Garoa, que na ocasião deixou uma pessoa morta. O grupo do Boca de Rua foi barrado na porta do prédio onde aconteceu a coletiva com a justificativa de não serem mídia tradicional.

 
Pousada era informada previamente das vistorias

Outra reportagem, que foi ao ar no Jornal do Almoço da RBS TV desta segunda-feira, apurou que a administração de rede de pousadas Garoa sabia previamente das datas e horários em que a fiscalização iria visitar cada sede. A reportagem teve acesso a uma tabela referente ao mês de julho de 2023, que mostra as datas das inspeções que seriam realizadas.

Um homem que trabalhou por cinco anos na empresa foi entrevistado e confirmou que a pousada sabia com antecedência das vistorias. Segundo ele, o aviso vinha de uma servidora da prefeitura de Porto Alegre e, com o proprietário sabendo das visitas, era possível maquiar a sujeira e esconder o que poderia complicar o funcionamento do lugar. Ele disse ainda que os funcionários Fasc que participavam das fiscalizações nunca entravam nos quartos e executavam apenas uma inspeção rápida.

A reportagem conversou com a servidora da prefeitura que repassava as informações, e ela confirmou a informação. Disse que o procedimento era necessário para preservar a privacidade dos hóspedes e porque algumas pensões da rede ficavam trancadas durante o dia e precisavam de alguém disponível para abrir a porta por não terem recepcionista.

Lei local que isenta alvará é de autoria do vice-prefeito

Uma reportagem do Sul21 apurou que uma lei aprovada pelo então presidente Jair Bolsonaro em 2019 retirou a exigência de alvará para o funcionamento de pousadas, o que beneficiou a Pousada Garoa. Em Porto Alegre, a legislação federal ganhou uma versão local. Entre os três autores da lei está Ricardo Gomes, que hoje é vice-prefeito.

A lei foi regulamentada por Melo em abril de 2021. Na coletiva de imprensa, o prefeito salientou que a pousada Garoa não precisava de alvará por conta da legislação federal.

Na época da aprovação da lei, segundo a reportagem, Gomes disse em um discurso em plenário que a legislação federal iria promover uma “transformação” no país, que iria “permitir a criação de emprego e renda”. Além dele, a lei é de autoria de Felipe Camozzato (Novo) e Pablo Mendes Ribeiro (MDB).

As leis federal e municipal estabelecem que a fiscalização das empresas que se declararam de baixo risco deve ocorrer “posteriormente”. A apuração do Sul21 aponta que a Pousada Garoa não atende a, pelo menos, dois dos requisitos da legislação: que as atividades sejam exercidas na residência do empresário, titular ou sócio (na hipótese em que a atividade não gere grande circulação de pessoas), ou ser tipicamente digital (de modo que não exija estabelecimento físico para sua operação), ou locar um espaço com no máximo 200 m² e até três pavimentos, com lotação de até 100 pessoas.

A reportagem afirma que entrou em contato com a assessoria da prefeitura, mas obteve resposta apenas em nota destacando que “a dispensa de alvará para alojamentos, pousadas e pensões está embasada em lei federal”.

* Com informações da DPE/RS e da Prefeitura de Porto Alegre


Edição: Marcelo Ferreira