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Coluna

‘O travesti’: sobre linguagem e poder

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"O discurso social, através da linguagem, busca a construção de existências normativas. Controla corpos, cria ideais estéticos" - Reprodução da obra Esconder o azul do mar, de Fefa Lins
O discurso que ecoa no tecido social prescreve formas de ser e agir; é um exercício de poder

A linguística é a ciência que busca compreender as manifestações da linguagem humana. A pesquisa pelas forças que estão em jogo, de modo permanente e universal em todas as línguas, oferece pistas sobre fenômenos peculiares da história. A fala é um exercício de poder. Proponho, então, refletirmos sobre o poder no sentido descrito por Michel Foucault. Para o filósofo francês, o poder acontece numa correlação de forças. "Onde existem relações humanas, existe poder." O poder não está situado em um local específico; ele está distribuído em todas as pessoas e é exercido a partir da linguagem.

O discurso que ecoa no tecido social prescreve formas de ser e agir; ele próprio é um exercício de poder. Por exemplo, a tentativa de fechar o sentido da palavra "família" tem por objetivo coagir e disciplinar os indivíduos. Dizer que família se resume a pai, mãe e filhos é buscar na heterossexualidade um ideal social. Da mesma forma, a persistência da palavra "homossexualismo", que mesmo retirada da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde em 1990, ainda é empregada, pasmem, em 2024. A eliminação do sufixo "-ismo" representa um marco, passando a homossexualidade de uma condição ligada à patologia para uma qualidade ou estado de ser.

Da mesma forma, a insistência no uso do pronome masculino ao se referir ao termo "travesti". Dizer "o travesti" é negar a condição de identidade de gênero feminina. Esta forma discursiva, calcada na normatividade, segrega corpos que existem de uma forma dissidente - no sentido de discordar de uma política oficial que condiciona o gênero ao sexo biológico. Como descreve a psicóloga Sofia Favero no livro Psicologia Suja “O sujo [...] está impresso na língua. Existem línguas sujas. Só percebi isso quando, na graduação, notei que as pessoas falavam mais baixo quando iam perguntar se eu era trans”. No livro, a autora, de forma brilhante, reflete como a intimidade foi capturada por discursos de poder.

Podemos também pensar na ampla utilização de palavras que reforcem o racismo estrutural: "serviço de preto", "mercado negro", "denegrir", "da cor do pecado", "não sou tuas negas", "cabelo ruim", "lista negra" e tantas outras que carregam um sentido recalcado que segrega e violenta corpos pretos. Como exemplo, cito uma mãe que relata de forma apreensiva que seu filho de 7 anos, preto retinto, não pode mais ir sozinho ao mercadinho da esquina: "como ele já cresceu, passou de criança para pivete". O menino, através do discurso dos outros, acaba ocupando um lugar estereotipado no campo social.

O discurso social, através da linguagem, busca a construção de existências normativas. Controla corpos, cria ideais estéticos, fecha o sentido da palavra "sucesso", constrói sonhos e desejos atravessados pelo sistema capitalista. Pensar e interrogar as diversas camadas discursivas que nos atravessam e constituem é uma possibilidade de oxigenação. Questionar o porquê de determinadas coisas serem ditas da maneira que são é um ato de liberdade.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko