Com o anel de tucum no dedo anular esquerdo, sou povo, sou guarani, sou Sepé Tiaraju
Os tempos em 2024 estão tri difíceis. E cheios de acontecimentos inesperados, quando estou chegando aos felizes e bem vividos 73. E rumando com entusiasmo para os 100.
A família não teve coragem de me contar os estragos da tempestade de 16 de janeiro. Cheguei na terrinha, Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, dias depois do temporal. A garagem do mano Bruno e cunhada Rejane foi inteiramente para os ares. Sobrou nada em pé. A sorte foi que eles tinham seguido no mesmo dia 16 de janeiro, terça-feira, para a praia de Capão da Canoa, para uns dias de folga e descanso. Na mesma noite, ou dia seguinte, o mano Marino telefona: “Precisam retornar imediatamente.”
Não foi o único estrago. Boa parte das árvores do matinho que fica a uns 50 metros da centenária casa da família, ao lado de um dos parreirais, onde em muitas décadas passadas estava a fonte de água que abastecia a família, além da água da cisterna recolhida pelas calhas da casa, matinho onde fazíamos o que chamávamos de piquenique debaixo das árvores, pinheiros, plátanos, taquareiras e outras árvores históricas, nunca derrubadas ou ameaçadas de extinção, foi derrubada pelo vento forte. Tragédia nunca vista em meus 73 anos de vida, e sobrevivência.
Doeu-me fundo outro estrago. No potreiro nos fundos da cozinha centenária, tem uma árvore que em nosso alemão de infância e vida chamávamos ´Schwarze Beere´, em tradução livre, ´fruta preta´, cujos frutos comíamos com todo prazer.
Mais importante, no entanto, é outro fato. A ´Schwarze Beere´, árvore que conheci já enorme, ficava sozinha no meio do potreiro. Ao seu lado, enquanto bois, vacas e terneiros pastavam, resolvemos fazer um campinho de futebol. Não só a gurizada de casa aí aprendeu a chutar a bola, fazer gols, ´brigar´ quando o mano Astor ficava brabo e chutava a bola para longe, no potreiro vizinho. Chegavam também primos e filhos de vizinhos, na época, anos 1960, famílias grandes. Juntavam-se todos no campinho, uma goleira de cada lado. E nos tornamos, inclusive as irmãs, bons jogadores do multicampeão São Luiz de Santa Emília.
Tristeza total. O ´Schwarze Beere´ tombou inteiro, arrancado pelas velhas raízes. Como tombam, no final da vida, os que passaram dos 100 anos, mas deram sua seiva, seu sangue e seus frutos para outras e outros, famílias, para a comunidade. Tristeza total, dor no coração.
Outro fato. Uso um anel de tucum preto há décadas, homenagem e compromisso com os povos indígenas. Outro dia, há algumas semanas, chego em casa e me dou conta: cadê meu companheiro de sempre e de todas as horas, o anel de tucum? Não está no dedo. Ficou onde, perdido, quem sabe quebrou, pisei em cima, ou caiu em algum lugar? Mas como, onde, se não vi ou senti sua falta antes?
Reviro pensamentos e últimos passos. Terá ficado no carro, quando o guardei na garagem, no outro lado da rua Tomás Flores, Porto Alegre? Terá caído na rua, enquanto eu, como sempre, vou carregando sacos de frutas e verduras trazidos de Santa Emília, mais malas e malas, tudo ao mesmo tempo, nos ombros de um idoso de 73!!!???
Quase me desespero. Volto para a calçada em frente, esquadrinho cada metro por onde devo ter passado, de um lado e de outro da rua. Nada, nada, nada nos primeiros metros. Chego na frente da garagem e..., no chão, em frente ao portão, está o anel de tucum, inteiro! Dou graças a Deus e volto mais que feliz para casa.
A vida aos 73 não está sendo fácil. As mudanças climáticas chegam em todos os lugares e atormentam o mundo inteiro. Digo para a gurizada nova: “Como será daqui a algumas décadas, com o clima Comum, se hoje já está assim? Cuidem, cuidem da Casa Comum!” Ao mesmo tempo, a paz está longe, cada dia mais distante. Uma terceira guerra mundial pode estar se aproximando, talvez nuclear. Como viver, e sobreviver nestes tempos?
A história do anel de tucum não me aconteceu pela primeira vez. Anos atrás, no caminho para Santa Maria, Curso Oscar Romero, dei uma parada no meio do caminho, casa da família, Santa Emília, Venâncio Aires. Também perdi o anel de tucum em algum lugar. E escrevi então um poema, devidamente declamado para as-os participantes - Íria Balzan, Rosa Guidolin, Tereza Dalmaso, Irmã Lurdes Dill lembram-se -, que alimenta minha utopia.
Eis o poema, de 2019, declamado no Curso Oscar Romero: ´NU SEM O ANEL DE TUCUM´.
“Saio de casa,/ algo me incomoda,/ há um vácuo,/ falta alguma coisa,/ estou sem horizonte./
Será o calçado fora de hora,/ com duas meias de cor diferentes?/ Ou o pouco cabelo estará despenteado?/ O fecho da calça de um velho estará aberto?/ Ou, quem sabe,/ seja a ausência de um botão da camisa?/
Ah, esqueci o anel de tucum/ em algum lugar recôndito, nalguma gaveta./
Estou sem o anel de tucum./
Dou meia volta,/fico pensativo,/ circulo em casa de mamãe,/ última parada,/ última noite,/ antes de Santa Maria.
Terá rodopiado por baixo de uma das camas do quarto?/ Larguei-o em cima de qual pia?/ Perdeu-se no fundo do armário/ cheio de roupas e toalhas?/ Ou tirei-o para esvaziar e lavar a cuia de chimarrão matinal?/
Meu anel de tucum faz-me irmão/ das-os esquecidas-os e humilhadas-os da história,/ faz-me companheiro de quem não conheço ainda/ ou encontrei pela primeira vez na vida./ leva-me a caminhar longas marchas e jornadas/ com quem acredita nos meus sonhos,/ com quem constrói comigo as lutas por um outro mundo possível,/ urgente e necessário,/ quem faz da igualdade o sentido da vida,/ da justiça o cuidado do ser e viver,/ da fraternidade a utopia e o Reino./
Sem o anel de tucum/ estou no frio do inverno,/ desgalhado,/ sem fogão a lenha para esquentar as mãos,/ os pés,/ o coração./ Pareço perdido no asfalto,/ sem luz no meio da densa floresta./ Caminho na estrada sem rumo,/ sem abrigo,/ nu,/ completamente nu./
Com o anel de tucum/ no dedo anular esquerdo,/ sou povo,/ sou guarani,/ sou Sepé Tiaraju.”
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko