Qual o tratamento recebido pelos indígenas do Rio Grande do Sul durante os 21 anos do regime implantado em 1964? Sabe-se que, no Brasil, o período teve efeito devastador sobre os povos originários. E no extremo-sul do Brasil?
É a pergunta que o livro "Os Indígenas do Rio Grande do Sul e a Ditadura Civil-Militar (1964-1985): um período de intensificação de um habitus colonial violador” pretende esclarecer. A obra será lançada nesta sexta-feira, dia 26, às 19 horas, no Clube de Cultura.
O Brasil de Fato RS entrevistou seu autor, o advogado e ouvidor da defensoria pública do Rio Grande do Sul, Rodrigo de Medeiros Silva. Veja como foi a conversa:
Brasil de Fato RS - Nos últimos anos, começamos a computar as mortes causadas pela ditadura entre os indígenas da Amazônia (como fez o livro Os Fuzis e as Flechas, de Rubens Valente). De acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, finalizado em 2014, indica que, apenas na investigação de dez povos, foram estimadas mais de oito mil mortes decorrentes do governo militar. O que aconteceu no Rio Grande do Sul com os indígenas durante a ditadura?
Rodrigo Silva - Houve muitas violações, descasos e omissões. Primeiro, temos que lembrar que, com os indígenas, as violações não foram inauguradas na ditadura e nem acabaram com o fim da ditadura. Mas, por ser um regime autoritário, as violações terminaram se intensificando.
A ditadura conseguiu fazer provas contra si mesma
Daquelas três fases que o (jornalista) Elio Gaspari sempre cita, do primeiro momento da ditadura, teve uma continuidade de violações. Inclusive, a ditadura promoveu inquéritos, tanto parlamentares quanto a partir do executivo, para conseguir fazer a crítica aos governos anteriores. Mas o que ela percebeu no Relatório Figueiredo (documento produzido pelo procurador estadual Jáder de Figueiredo sobre a questão indígena no regime militar), nos relatórios da CPI da Assembleia Legislativa do RS, e também do Congresso Nacional foi um quadro de violações e corrupção.
Na verdade, a ditadura conseguiu fazer provas contra si mesma, tanto que o Relatório Figueiredo sumiu, só apareceu em 2012, e o relatório da CPI da Assembleia Legislativa ficou inócuo. Depois, teve a época mais violenta dos anos de chumbo, com (a edição do) AI-5 e tudo se perdeu. A própria CPI do Congresso Nacional, de 1968, que visitou o Rio Grande do Sul e constatou inúmeras violações, não conseguiu ter continuidade por causa do ato institucional.
Trabalhavam (até) crianças e não havia retorno para a comunidade
Houve ainda a época de intensificação das violações, no final da década de 1960 e começo dos anos 1970. Vamos ter o projeto soja na década de 1970. Até hoje temos um desdobramento disso nos arrendamentos de terra, causando conflitos nas terras indígenas. Vamos ter a intensificação dos trabalhos forçados, análogos à escravidão. Trabalhavam (até) crianças e não havia retorno para a comunidade indígena. Isso foi visto na CPI de 1977, já na derrocada da ditadura.
E existia toda uma cultura de, praticamente, um campo de concentração. Para os indígenas saírem (da reserva) e venderem seus artesanatos tinham que ter uma autorização do chefe do posto. Sofriam penas de prisão ilegal, tortura, proibição de falar a língua. A ditadura tinha uma política muito forte integracionista para transformar o indígena em trabalhador nacional que, na verdade, serviriam para os empreendimentos dos parceiros da ditadura, haja visto os arrendamentos e tudo o mais.
BdFRS - E desaparecimentos...
Rodrigo Silva - O documentário Índios Memórias de uma CPI, do Hermano Penna , vai tratar da CPI de 1968, que teve seu foco na região do Bico do Papagaio, em Tocantins, no Maranhão, no Pará, e no Rio Grande do Sul, mostra que tinham várias remoções forçadas acontecendo. Tanto que, por exemplo, teve ajuda da CPI da Assembleia/RS. Lugares visitados pela CPI da Assembleia havia poucas semanas a CPI do Congresso foi lá e não tinha mais ninguém. Botavam no caminhão e removiam. Isso causava desagregação social e conflito entre as comunidades indígenas.
Havia muita dificuldade (para obter dados) com as pessoas no meio rural, falta de documentação. Para você fazer essas afirmações é muito difícil. Um exemplo é o Reformatório Krenak, que aconteceu em Minas Gerais, no território Krenak. Tem no livro Os Fuzis e as flechas, do Rubens Valente, que o administrador que assumiu o local encontrou dezenas de pessoas que não tinham o porquê estarem presas lá. E na relação tem um Kaingang, não sabemos se do Paraná, de Santa Catarina ou do Rio Grande do Sul. A falta de dados, até por ser uma ditadura, é um desafio.
Uma colonização preconceituosa de entregar terras para colonos de ascendência europeia
BdF RS - No romance Tom Vermelho do Verde, Frei Beto trata do massacre de indígenas, pela ditadura militar, durante a abertura da rodovia BR 174, a Transamazônica, que liga Manaus à Boa Vista. E aqui no estado, quais eram os interesses?
Rodrigo Silva - Os mesmos interesses da colonização, uma colonização preconceituosa, de entregar terras para colonos de ascendência europeia. E colocar (força de trabalho barata) na produção agrícola, que a gente chama hoje de agronegócio, em desrespeito ao modo de vida e de relação com a terra que os indígenas tinham.
Essa política, que sempre existiu no estado, foi intensificada com a ditadura militar: remoções, limitações de ir e vir, proibição de falar a língua e de seus costumes, perda dos territórios. Temos o caso da terra indígena Borboleta, no município de Salto do Jacuí, terra Kaingang, perdida na época da ditadura.
BdF RS - Na Amazônia, as violências e mortes foram atribuídas, em parte, a quem deveria justamente proteger o indígena, ou seja, ao Serviço de Proteção ao Índio, o SPI, e à Funai, que o substituiu. E aqui?
Rodrigo Silva - Aqui temos o mesmo problema em relação às autoridades, porque eram políticas públicas do SPI e, depois, da Funai. Eram políticas públicas de cortar madeira, de produzir milho, de produzir soja. A produção do milho já é anterior à ditadura, mas teve continuidade. A produção de soja é do tempo da ditadura. Eles pensavam os projetos sem pensar nas pessoas, sem pensar no entorno, inclusive nos não indígenas. Vamos lembrar que o projeto da Mina Guaíba (projeto de mineração de carvão nas imediações de Porto Alegre) é de 1978 e impacta inclusive indígenas.
O Rio Grande do Sul é o estado com mais pendências de processos de demarcação
BdF RS - A Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório final, apresentou 13 recomendações relacionadas aos povos indígenas. Entre elas, um pedido público de desculpas do Estado brasileiro pela tomada das terras e demais violações de direitos humanos, além da instalação de uma Comissão Indígena da Verdade. Isso é um avanço na sua avaliação?
Rodrigo Silva - É importante ter a Comissão Nacional Indígena da Verdade, mas precisa avançar mais. Precisa demarcar os territórios. Em 2019, foi apontado que o Rio Grande do Sul é o estado da federação com mais pendências de processos de demarcação. E sabemos que, durante todo o governo Bolsonaro, não ocorreu
nenhuma demarcação.
A situação continua grave. É um desafio para o atual Ministério dos Povos Indígenas. Além da demarcação, é cabível a reparação, se as pessoas sofreram com trabalho forçado, se seus parentes foram submetidos ao trabalho análogo à escravidão. Se sofreram prisões ilegais, tortura, maus tratos, a proibição de uso do idioma, remoções forçadas. E a perda, ainda, do meio ambiente. O modo de vida originário fica perdido também se o meio ambiente foi destruído.
Não se pode parar só no pedido de desculpas. Tem que fazer as reparações
BdF RS - No dia 26 de março, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação pedindo reparação coletiva por danos causados aos indígenas do Rio Grande do Sul durante a ditadura. A ação aconteceu antes do Brasil conceder as primeiras reparações coletivas da história, pedindo desculpas aos indígenas Krenak e Guarani Kaiowá por perseguições no regime militar. Que significado isso tem para as comunidades?
Rodrigo Silva - Significa que as instituições públicas começaram a cumprir o seu papel em relação aos povos originários. É o início. O pedido de desculpas é importante. Mas não se pode parar só no pedido de desculpas. Tem que fazer as reparações. A ação civil pública também, da mesma forma, vai ter que ter um retorno do judiciário e do Estado brasileiro, se quiser entrar em acordo. E o estado gaúcho também, se quiser entrar em acordo nesse sentido.
Na ação civil pública há pedidos de reparação, por exemplo, para o PNGATI (Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas), uma política de recuperação ambiental, gestão e uso sustentável de uma determinada área.
No Brasil, ainda não foi superada essa marcha de conquista de território e submissão dos povos
BdF RS - Estamos no mês da descomemoração dos 60 anos do golpe cívico militar e também do Abril Vermelho. O que representa essa invisibilidade indígena durante a ditadura?
Rodrigo Silva - No livro, faço a defesa de que existe um habitus, um conceito do (sociólogo francês) Pierre Bourdieu, de colonizador, que não foi superado.
Para as pessoas, para o senso comum, e infelizmente, para quem está à frente das decisões, se você sabe que tem minério ali naquele chão, a lógica é retirar aquele minério. Se ganhar dinheiro cortando as árvores, retira o dinheiro cortando as árvores. É uma marcha colonial de conquista e de exploração continua
No Brasil, ainda não foi superada essa marcha de conquista de território e submissão dos povos. Submissão para ser mão-de-obra barata ou mão-de-obra escrava para esses empreendimentos. E, se não se submeterem, serão aniquilados pela omissão ou pela violação mesmo da dignidade e das suas vidas. A marcha colonial não foi superada. O que aconteceu na ditadura, por ser um regime autoritário, foi a sua intensificação.
BdF RS - Falamos também da cultura indígena. O que mais que a ditadura deixou para os povos indígenas?
Rodrigo Silva - Nas comunidades indígenas Kaingang, por exemplo, a gente vê uma herança que não é só da ditadura. É da época do SPI, também anterior à ditadura, que é da militarização, com cargos, com a referência a ser “capitão” (cargo hierárquico criado entre os indígenas) e tudo o mais.
Mas a grande marca que a ditadura deixou foi a diminuição dos territórios indígenas, a degradação ambiental, os conflitos a partir do arrendamento de terra para plantar soja nesses territórios e o apagamento das violações que os próprios indígenas sofreram.
E a grande maioria da sociedade não sabe o que aconteceu. Quem cometeu esses crimes não foi responsabilizado e ainda não houve reparação para as vítimas.
BdF RS - Como resgatar os direitos humanos dos povos originários?
Rodrigo Silva - Tem males que não tem como recuperar. Mas cabem indenizações por danos imateriais e morais. Cabem também políticas públicas efetivas, tanto de demarcação do território como de recursos para a recuperação ambiental, gestão sustentável do meio ambiente, alternativas de renda que não sejam incompatíveis com o modo de vida deles. Todas essas políticas públicas precisam ser feitas.
É preciso a responsabilização do Estado
BdF RS - O que te levou a estudar o tema que se transformou num livro?
Rodrigo Silva - Trabalho com a questão há muito tempo. Participo da Rede Nacional de Advogadas e Advogadas Populares, a Renap. Tenho quase 21 anos de advocacia, moro no Rio Grande do Sul há 10 anos, mas já atuava no Ceará com o movimento indígena e nacionalmente com algumas causas.
Aqui, comecei a estudar dano existencial coletivo nas comunidades tradicionais e povos originários. O que também se tornou livro lá atrás. Também acompanho os quilombolas. Quanto aos indígenas do RS, eu pude acompanhar o debate do marco temporal, inclusive, assessorando as comunidades na ação do STF, em amicur curiae. Como querem exigir um marco temporal a adoção da Constituição de 1988 se os indígenas sofriam tantas violações e não estavam no território por causa das ações dos governos militares?
No mestrado, pude debater o que aconteceu com os Krenak durante a ditadura. Percebi que também tinha muito material a ser buscado e registrado para alimentarmos uma possível ação civil pública do Ministério Publico Federal, aqui no Rio Grande do Sul, que foi impetrada em março
BdF RS - Uma mensagem final...
Rodrigo Silva - São múltiplas as violações e também são específicas de cada área. É preciso a responsabilização do Estado e da sociedade, buscar essas informações, ouvir e resgatar o que houve para que essa reparação seja o mais justa possível. E dizer “Não” ao marco temporal. Do contrário, estaremos efetivando todas as violações da ditadura cometidas contra os indígenas.
Edição: Ayrton Centeno