Depois de três dias de encontro, contando com mais de 750 pessoas representando quase todas as dioceses que integram a regional Sul 3 da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o 16º Encontro Estadual das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) do RS encerrou com um chamado ao compromisso e à ação. Se nos primeiros dois dias os verbos Ver e Julgar deram a tônica dos debates e reflexões, o terceiro dia trouxe à tona a urgência do verbo Agir. E isso está refletido na carta de compromissos publicada ao final do encontro.
:: Segundo dia de Encontro de CEBs no RS conduz reflexão ao verbo 'Julgar' e relembra mártires ::
Conforme o documento, a atividade levou os/as participantes a refletir, vivenciar e celebrar os desafios da justiça e da amizade social para os migrantes de ontem e de hoje, “Fazendo memória ao Deus do Êxodo, que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro (Dt 10,18), a nossa gente sentiu-se calorosamente conclamada a amar o migrante, porque também nós fomos migrantes na terra do Egito (Dt 10,19)".
Foram lembrados no documento os primeiros migrantes que chegaram ao território no período das imigrações históricas e os privilégios que ampararam sobretudo os de origem europeia, ainda que se tenha feito alusão às dificuldades que enfrentaram. Também foram lembrados os povos originários que foram desterrados nos constantes processos de violação de direito natural a terra e a sua condição de luta atual por retomada da terra e afirmação de direitos.
Ainda contaram no documento os povos africanos, sequestrados em sua terra natal e trazidos além mar como escravos e a busca de uma abolição que ainda se dá nos dias de hoje quanto ao respeito de sua tradição, memória, espiritualidade e direitos. Por fim, foram afirmados os migrantes e imigrantes deste tempo e a urgência do acolhimento que precisam para o exercício pleno de seus direitos e suprimento de suas necessidades como seres humanos que são.
O documento denunciou o tratamento desigual dado a migrantes e refugiados, vide as diferentes posturas adotadas a depender de seu lugar de origem. “Precisamos combater essa discriminação e fazer valer a justiça e a amizade social a todos os povos que transitam em nosso meio. Tal ação deve começar pelas nossas próprias comunidades”, afirma a redação.
Relembrando a passagem bíblica onde o povo originário de Israel perambulou pelo deserto apartado de sua referência de território, a Carta do Encontro convoca a que cada membro/a das Comunidades Eclesiais de Base possa ver-se também como participante de “um povo peregrino” e esteja disposto a alargar o espaço de sua “tenda”, isto é, esteja disposto a “abraçar todos os povos itinerantes em sua diversidade, sem distinção de forma alguma, mas especialmente assistindo aos mais necessitados, ou seja, àqueles que, refugiados de suas terras e condenados a sofrer em território alheio toda sorte de racismo, xenofobia, exploração, entre outros tipos de preconceito e de intolerância”.
Em suas linhas finais o documento afirma que “a diversidade é o caminho para o mundo novo, onde toda a humanidade, independente de cor ou credo, seja irmã”.
Caminhar juntos como peregrinos
Motivando sua homilia a partir da abordagem que o encontro deu para o tema das migrações e imigrações, Dom João Salm relembrou que “ontem ou hoje, somos todos migrantes, peregrinos da Casa do Pai, chamados a caminhar juntos, como Igreja Sinodal, em comunhão, participação e missão, sendo um só coração e uma só alma”. Citando o lema do encontro, Dom João pontuou um desafio a todos e todas ali presentes: “Nos acolhendo mutuamente, alargando nossa tenda, poderemos ser comunidade fraterna”.
“As Comunidades Eclesiais de Base, assíduas na escuta e na prática da Palavra, na busca de formação, na participação da Eucaristia, na oração, na reflexão, na ajuda mútua e na busca de condições de vida dignas para todos, empenhadas na promoção da amizade social, lutando contra as estruturas de morte, oferecem a Jesus o espaço de que precisa para continuar sua presença de bom pastor em meio aos seus”, afirmou o bispo anfitrião.
Falando ao Brasil de Fato RS, ao final da celebração, Dom Salm afirmou a importância das CEBs para a igreja: “o ideal do Evangelho é que as pessoas vivam de forma mais solidária e fraterna, há uma tradição das CEBs como a experiência da Igreja que se quer viver”.
O bispo manifestou votos de que “a proximidade, a alegria, a renovação e o estímulo da fé repercutam nos meios para onde vão retornar os participantes do Encontro, que isso alimente o verdadeiro espírito cristão, com alegria e esperança, abrindo os olhos para as lutas por mais vida e dignidade para todos”.
Participantes afirmam que encontro revigora caminhada das CEBs
Um dos anfitriões do encontro foi o padre Edson Thomassim, assessor das CEBs, meio no qual é chamado carinhosamente como Edinho. Em suas palavras de agradecimento aos voluntários e voluntárias que envolveram-se na construção da atividade, bem como aos participantes que se deslocaram das diferentes regiões até São Leopoldo, Edinho afirmou considerar “uma experiência muito rica, um esforço de toda equipe diocesana das Comunidades Eclesiais de Base em realizar um encontro que fosse de animação e comprometimento”.
Reforçou ainda a importância do tema que “com pretexto e contexto dos 200 anos da imigração alemã” no RS e particularmente no território de São Leopoldo, foi possível “destacar a diversidade da realidade migratória e o desafio concreto de sermos de fato igreja comprometida coma justiça e a amizade social”. Afirmando sentir-se com o dever cumprido, expressou o desejo de que se mantenha “viva a chama das comunidades eclesiais de base, do compromisso de uma igreja com a utopia do reino tornada dia a dia realidade nas lutas concretas do povo”.
A agente da Pastoral da Terra (CPT) Oldi Helena Jantsch, mais conhecida pelo apelido de Tiririca, lembrou que as CEBs têm forte relação com os movimentos sociais estabelecidos no campo e nos espaços periféricos. “Trabalhamos juntos com o povo que se organiza para buscar seus direitos a uma vida digna, ao respeito aos seus direitos ao trabalho, à alimentação, a um pedaço de terra”.
Para ela, que se disse sair do encontro revigorada e com muita energia para seguir o exercício do trabalho pastoral com os movimentos do campo, é preciso que as CEBs inspirem-se nas ações de movimentos de matriz social e popular como o MST e o MPA, mas que também estes movimentos busquem nas CEBs a inspiração para que de forma conjunta alcancem os objetivos de suas lutas, que são os mesmos. “Saímos daqui mais unidos, mais fortes, com a chama acesa em nossas veias para trabalhar com entusiasmo por um mundo melhor, com mais justiça social e igualdade para todos e todas”, concluiu.
Roseli Pereira Dias, participante da coordenação colegiada da Cáritas no RS, apontou que é preciso reconhecer e agradecer o trabalho dos organizadores, que em cada detalhe conseguiram imprimir a mística do que são as CEBs. “Em relação ao tema – migrações – que foi o fio condutor deste encontro, as assessorias nos levaram à uma reflexão muito profunda, tanto a partir da mensagem cristã quanto aos dados da realidade, tanto conjuntural, quanto estrutural”, acrescentou.
Para a agente pastoral, é possível afirmar que “os participantes mergulharam na reflexão, pois nos compromissos apresentados ao final deste encontro, surgiram muitas propostas concretas para alargar a tenda, acolher os migrantes nas comunidades e incidir nas políticas públicas referentes”. Ainda destacou a importância do protagonismo da juventude, que animou o Encontro, esteve presente com protagonismo nas instâncias de organização e participou ativamente de todo este processo.
Já para a jovem Glenda Sábio Garcia, religiosa que integra a congregação das Irmãs Franciscanas da Penitência e Caridade Cristã, o encontro foi uma daquelas experiências fortes "em que saio com a energia renovada para as lutas cotidianas, fortalecida no sentido da caminhada no seguimento de Jesus, crucificado pelas causas do Reino e Ressuscitado nas lutas do povo de hoje”.
Explicou ainda que, fazendo parte da organização, pode “fazer a experiência da Ruah que ilumina desde o sonho do evento, da preparação em mutirão e da realização deste encontro que reuniu tantas irmãs e irmãos, revelando a beleza da diversidade que compõe nossas comunidades de base, o rosto e o nosso jeito de ser igreja”. Destacou ainda o protagonismo das juventudes – destacando a PJ e PJE pelo seu envolvimento em diferentes espaços – e o protagonismo das mulheres, do movimento negro e da comunidade indígena “que na maioria das vezes precisam arrancar as estacas das tendas, da sociedade e da igreja, para que sejam alargadas e, assim, testemunhem a sinodalidade”.
Próxima estação do trem das CEBs: Bagé
Ao final da atividade foi anunciada a escolha da Diocese para sediar o 17º Encontro Estadual das CEBs do RS. Dom Frei Cleonir Dal Bosco, bispo daquele território, acompanhou a grande delegação que havia se deslocado da região da fronteira com o Uruguai até São Leopoldo para participar da atividade e mostrou-se motivado para receber o “trem” das CEBs. Após receber as simbologias do sino e da chama que representam a essência das CEBs, Dom Cleonir falou à reportagem do Brasil de Fato RS.
“Acolhemos com muita alegria e vamos caminhar juntos para preparar e construir juntos o próximo Encontro Estadual com espírito sinodal”. Destacou que a Diocese de Bagé tem “um histórico de vida em comunidade, de comunhão, de participação, de pegar junto para construir o projeto do reino de Deus”. Citou ainda que a inspiração para iniciar o trabalho remete ao livro dos Atos dos Apóstolos, integrante do Novo Testamento, “como reflexo, como espelho das nossas comunidades, ali buscamos nas fontes, onde temos o inícios das primeiras comunidades, onde o próprio Cristo e os apóstolos iniciaram a vida da igreja cristã a partir dos pequenos grupos que viviam na comunhão, na partilha e na corresponsabilidade e lá ninguém passava necessidade”.
Para Dom Frei Ceoenir, o espírito das CEBS é de solidariedade, de comunhão, de participação e de espiritualidade, “que nos torna ao mesmo tempo mais humanos e mais próximos de Deus”. Ao final reafirmou a alegria e o compromisso: “Recebemos esse compromisso em São Leopoldo e saímos de lá trazendo os símbolos que vão estar presentes, criando essa comunhão na nossa diocese e preparando já todo o encontro, vamos logo nos reunir para começar o trabalho. Que alegria poder viver este momento, nesse espírito sinodal, animados como irmãos e irmãs, construindo o reino de Deus nas pequenas comunidades”.
Confira a íntegra da Carta do 16º Encontro das CEBs do RS
Carta testemunho do que vivemos no 16º Encontro Estadual das CEBs do RS
À grande rede gaúcha de migrantes (posto que migrantes somos nós),
A Paz e o Bem da parte da Santíssima Trindade, comunidade primeira, modelo e fonte de vida para nossas amadas Comunidades Eclesiais de Base.
Eis que, de 19 a 21 de abril, São Leopoldo viu chegar o trem das CEBs, trazendo nos vagões a sua história, fazendo-nos recordar de toda a sua trajetória, do 1º ao 16º Encontro Estadual. Pertencente à Diocese de Novo Hamburgo, situada na região metropolitana de Porto Alegre, a cidade acolheu, neste que é o primeiro encontro presencial após a pandemia, as delegações das diversas regiões do Estado, que assim puderam refletir, vivenciar e celebrar os desafios da justiça e da amizade social para os migrantes de ontem e de hoje. Fazendo memória do Deus do Êxodo, “que faz justiça ao órfão e à viúva, e ama o estrangeiro” (Dt 10,18), a nossa gente sentiu-se calorosamente conclamada a “amar o migrante, porque também nós fomos migrantes na terra do Egito” (Dt 10,19) .
A data escolhida para o início de tão grandiosa reunião não deixa de ser emblemática, uma vez que na sexta (19) celebramos o dia dos povos indígenas. A abertura contou, inclusive, com a apresentação cultural da comunidade kaingang Por Fi Ga, habitante do município. Nada mais simbólico, considerando-se que, embora “indígena” signifique “natural do lugar”, a comunidade Por Fi Ga é composta por famílias que foram forçadas, em algum momento, a deixar seu território de origem, obrigando-se a migrar para a zona urbana de São Leopoldo, onde vagou por algumas regiões até ser finalmente assentada em um bairro da periferia. Essa condição, por si só, já é um indicativo dos motivos pelos quais o tema das migrações foi escolhido para o encontro.
De fato, apesar da alegria contagiante da equipe de animação, que empolgava os participantes com seu repertório de músicas da caminhada, o desenvolvimento do tema causou grande apreensão da assembleia com a situação de diversos grupos migrantes. Como de praxe, o primeiro momento de reflexão nos convidou a VER por meio de uma análise da conjuntura atual. A dupla responsável pela assessoria, Jaqueline Bertoldo (pesquisadora de Direitos Humanos e Mobilidade Urbana) e Pe. Alfredinho (Pastoral do MIgrante), levou-nos a perceber como os diversos movimentos migratórios que formaram - e continuam formando - o povo brasileiro privilegiaram alguns grupos (notoriamente os de origem europeia), ao passo que escravizaram - e continuam oprimindo e empurrando para as periferias - os não-brancos. Essas correntes migratórias se deram, num primeiro momento, de fora para dentro do Brasil (e continuam se dando, em especial, para povos fugindo da opressão), e depois se intensificaram dentro do território nacional (novamente num contexto preferencialmente de fuga de realidades sofridas). A conclusão dessa leitura de cenário foi a de que precisamos “alargar as tendas”, isto é, acolher o migrante, evocando claramente a mística do Êxodo, quando o povo hebreu habitou em tendas durante todo o seu processo migratório de fuga da opressão do faraó.
O momento seguinte, de iluminação bíblica (JULGAR), só fez reforçar esse sentimento. Após uma breve explanação conduzida por Ildo Bohn Gass, do CEBI, os participantes foram divididos em grupos, identificados simbolicamente com nomes de países da periferia do mundo. Cada grupo leu um texto diferente da Bíblia, selecionado de um livro do Primeiro ou do Segundo Testamentos. A temática comum era a imagem do migrante (também chamado de “estrangeiro” ou “forasteiro”) nos textos sagrados. Dada a centralidade dos Evangelhos, chamou-se especialmente a atenção para o fato de que Jesus, também ele, foi um migrante. Primeiro, em seu nascimento, distante da terra onde viviam seus pais e onde ele mesmo viria a crescer. Depois, conforme o Evangelho de São Mateus, tendo de fugir para o Egito por um tempo. E, ao longo de sua vida pública, indo e vindo de Jerusalém e de regiões fora da Judeia e da Galiléia, ora para fugir da perseguição, ora para espalhar a Boa Nova a outros povos. Por fim, em Mt 25,43, Jesus mesmo diz: “(Apartem-se de mim, malditos, porque) fui forasteiro e não me acolheram” (ou seja, mantiveram suas tendas estreitas).
Por ser a leitura popular, tão cara à mística das CEBs, uma experiência vivencial (a Bíblia na Vida e a Vida na Bíblia), esse momento culminou com a Celebração dos Mártires e Defensores da Vida. Erguendo-se como uma verdadeira multidão peregrina, a assembleia organizou-se para uma caminhada entre o Santuário do Sagrado Coração de Jesus e o Museu do Rios dos Sinos. Esse momento de manifestação fez passar pelas ruas da cidade uma Igreja que “alarga sua tenda” em direção à Casa Comum, que tem como símbolo, em São Leopoldo, o Rio dos Sinos, ponto de chegada de migrantes e fonte de sustento para o povo. Durante o trajeto, percorrido a pé (inclusive, com algumas pessoas sentindo no próprio corpo o cansaço e demais dificuldades pelas quais passam os povos refugiados em suas travessias), foram recordadas as lutas dos mártires: Chico Mendes, Frei Tito, Irmã Cleusa, Dom Oscar Romero, Roseli Nunes, Irmã Doroti, Pe. Josimo, Sepé Tiaraju e Margarida Alves, entre tantos outros, de ontem e de hoje. Após refletir o Evangelho de Lucas, no qual o próprio Jesus proclama que “o Espírito do Senhor está sobre todas as pessoas que proclamam a libertação do povo oprimido” (cf. Is 61,1-3; Lc 4,18-21), o grupo foi concluir sua experiência peregrina indo dormir nas casas das famílias das comunidades que abriram suas portas para acolher os “forasteiros”.
Retomando as reflexões dos dias anteriores, ficou a cargo do último momento dar espaço para os devidos encaminhamentos rumo a uma AÇÃO concreta do povo de Deus. Estamos de acordo que o tratamento dado a migrantes e refugiados é desigual, adotando (quem acolhe) diferentes posturas a depender de seu lugar de origem. Precisamos obviamente combater essa discriminação e fazer valer a justiça e a amizade social a todos os povos que transitam em nosso meio. Tal ação deve começar pelas nossas próprias comunidades. Como no Êxodo, vejamo-nos também nós um povo peregrino, alarguemos nossas tendas, isto é, abracemos a todos os povos itinerantes em sua diversidade, sem distinção de forma alguma, mas especialmente assistindo aos mais necessitados, ou seja, àqueles que, refugiados de suas terras e condenados a sofrer em território alheio toda sorte de racismo, xenofobia, exploração, entre outros tipos de preconceito e de intolerância. E assim partimos de volta para nossas casas e tendas, cantando, louvando a Deus e tendo a certeza de que acolher a diversidade é o caminho para o mundo novo, onde toda a humanidade, independente de cor ou credo, seja irmã.
São Leopoldo, 21 de abril de 2024.
16º Encontro Estadual das CEBs do RS
Edição: Katia Marko