Rio Grande do Sul

Coluna

Um março e um abril super quentes: ditadura, democracia, paz

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Para a elite conservadora e os militares, o Comício das Reformas, na Central do Brasil, foi o estopim para o golpe civil militar de 1964 - Acervo Lemad/USP
Muita luta, muita mobilização, muita Formação e Ação são necessárias para um outro mundo possível

O tempo passa e as memórias vêm. 1974, há 30 anos, já morador da Vila Franciscana, Porto Alegre, frade franciscano e estudante de Teologia e letras na PUCRS, escrevi um texto no livro comemorativo dos 50 anos do Seminário Seráfico de Taquari, Rio Grande do Sul, onde morei e estudei de 1963 a 1969. Título: “À margem da história – ou dentro da história dos poderosos.”

Escrevi em 1974, então com 23 anos: “Essa não é uma crônica sorridente. Mas parece-me necessária. Afinal, não vivemos só coisas doces e positivas no Seminário. Deixo para os outros os louvores. Precisamos assumir as fraquezas, os erros e equívocos, para não repeti-los no presente e no futuro.”

Para entender o hoje, de vez em quando é preciso olhar para trás, ´assumir os erros e equívocos, para não repeti-los no presente e no futuro´. O futuro, neste momento, é 2024.

Segue meu artigo de 2024. “Entrei para o Seminário em 1963. Ano historicamente importante. Percebo-o hoje, não naquele tempo. Porque então estávamos como que fora da história, sem contato com ela. Ou melhor, para ser mais preciso, tínhamos contato, mas sob uma ótica bem determinada: a dos poderosos, da classe dominante. À margem estávamos do ponto de vista dos oprimidos, dos trabalhadores.

Escrevendo isso, não tenho preocupação ou interesse em apontar culpados, que não sei se os houve; acho que fomos todos inocentes úteis. Ou não? Alguns fatos confirmam facilmente minhas afirmações.

Da movimentação popular de 1963, não tomei conhecimento nem me chamou atenção. Mas lembro-me bem que íamos todos – e gostávamos – às projeções dos Mistérios Gozosos, Dolorosos e Gloriosos na Praça da Matriz de Taquari e ouvíamos os sermões do padre Patrick Peyton. E elogiávamos seu lema famoso: ´Família que reza unida permanece unida´. Tudo muito bem urdido, embora a justificativa fosse ´espantar o comunismo ateu e diabólico´. Hoje sabemos que ele, consciente ou inconscientemente - não importa -, preparava as condições para o futuro golpe militar e a ditadura, e era da CIA.”

Mais que sugestivos os acontecimentos de 1964 e minha percepção em 1974.

Segue meu relato de 1974: “No mesmo ano, em novembro, era assassinado John Kennedy. Lembro-me como se fosse hoje. Estávamos assistindo, no salão do Seminário, a um destes filmes dos Mistérios. Na saída, pelas cinco da tarde, a bomba: Kennedy assassinado. Tristeza mortal em todos. Como poderia ser assassinado esse home, o primeiro presidente católico dos Estados Unidos? Parecia que o mundo perdera a mais sana de suas criaturas.

Kennedy era um ídolo para nós. Até hoje, mesmo sabendo que ele era apenas um liberal (ou nem tão liberal assim), que quis invadir Cuba, que começou a guerra no Vietnã, que inventou a famigerada Aliança para o Progresso – que considerávamos uma santa ajuda para a América Latina – e outras trapalhadas mais, não consigo esconder um misto de admiração e fascínio por ele.”

Como vivi-vivemos 1964, o golpe militar e civil e a ditadura nascente?

Escrevi em 1974: “O ´perigo comunista´ nos assustava. Do pouco que ouvíamos e sabíamos – eu tinha 12 para 13 anos –, era que o comunismo estava às portas, maquiavélico, sanguinário e, sobretudo, ateu.

1964 e os acontecimentos da chamada ´Revolução´ bem o atestam. Ainda me recordo bem que, no 31 de março e nos primeiros dias de abril, o rádio estava ligado o dia inteiro na sala do ´prefeito´ do Seminário: ouvíamos os apaixonados discursos de Carlos Lacerda, alertando para o ´perigo vermelho´ e para a destruição – velho chavão!- da família, da tradição cristã e da propriedade particular. Estávamos apavorados. Tínhamos ouvido falar dos ´grupos dos onze´ do Brizola. Até lá em casa, Santa Emília, havia pelo menos um adepto deles. Murmurava-se que ele possuía armas em casa, que ele era comunista, etc. e tal.”

Conto mais, em 1974, sobre os acontecimentos de 1964: “Assim fomos crescendo e sendo educados nesse tempo. Quando foram criados os dois novos partidos – ARENA e MDB –, meu pai me dizia, e eu acreditava, que todo partidário do MDB era comunista. E no Seminário, nos anos subsequentes, 1965, 66, 67, nada dessa minha (e nossa) mentalidade foi substancialmente mudada. Estudávamos muito, mas era um estudo, especialmente nas áreas de história, moral e cívica, religião e outras matérias afins, sob uma ótica tradicional, conservadora, senão frequentemente reacionária.”

Eram os tempos, e como os vivi. Relembro, no artigo escrito e publicado em 1974: “O que mais nos atingiu foram ainda os resultados do Concílio Vaticano II: principalmente, porém, quanto à renovação litúrgica, embora também estudássemos os principais documentos. Passamos a fazer celebrações de cunho renovador na forma (em pequenos grupos, em português, comunhão sob duas espécies e outras coisas do gênero),mas sem que houvesse uma complementar renovação litúrgica. De Medellin e dos acontecimentos que cercaram a Igreja latino-americana em 1968, do nascimento, nessa época, das CEBs, não me lembro de ter ouvido falar mais profundamente.”

E nas minhas reflexões e memórias, escritas em 1974, como foi e vivi 1968?: “Aliás, 1968 – ano-chave da história brasileira e mundial – praticamente passou em brancas nuvens. Do que mais tenho lembrança, o que é compreensível e facilmente explicável, é da Primavera de Praga e do seu trágico fim com a invasão dos tanques russos. Cheguei mesmo a fazer um trabalho, para a aula de História Geral com Frei Plácido, sobre este tema, denunciando o imperialismo russo. E, se não me engano, já fazia alguma referência (o que é um progresso) ao imperialismo americano no Vietnã.

Outros acontecimentos de 68 também passaram em brancas nuvens. Não me lembro de ter ouvido falar alguma vez da movimentação estudantil no Brasil e no resto do mundo. Estávamos alheios a tudo isso, fechados no Seminário, lendo, quando muito, porque muitos nem liam, o conservador Correio do Povo (a revista Veja fui descobrir mais tarde, já como frade, na sala de recreio dos freis). Embora eu fizesse parte da direção cultural da UTES (União Taquariense de Estudantes Secundários) em 69, ainda que isso não representasse nada de mais sério ou conscientizador.

E em 1968 eu já estava no segundo científico e tinha 17 anos. Quer dizer, poderia estar acompanhando todos os acontecimentos, porque a grande parte dos estudantes e da juventude nele envolvidos e muitos dos mortos, presos, torturados e exilados eram da minha idade.”

A história acontece, passa, mas não passa. Onde começou, aos poucos, uma mudança na minha história e percepção da realidade e do mundo? Segundo meu escrito de 1974, foi assim: “No ano de 1970, ano eleitoral, já no noviciado em Daltro Filho, ficou clara a confusão ideológica e falta de critérios para a análise da realidade e do  momento histórico que estávamos vivendo. Votei – menos mal – num candidato do MDB ao Senado (deve ter sido Paulo Brossard) e noutro  da ARENA (Tarso Dutra, provavelmente. Argh!) e em candidatos da ARENA à Câmara e Assembleia, um o ´grande cristão´ e ´defensor da família´, Cid Furtado, e outro, o grande ´amigos dos freis e do Seminário´, Guido Lerman.”

Vou concluindo minhas reflexões de 1974, tri importantes em 2024, em tempos de ultraneoliberalismo e neofascismo, presentes e atuantes: “Realmente, a educação que recebemos naquele tempo, inconscientemente, creio, era uma educação que não levava a uma visão crítica da realidade nem acompanhava, ou o fazia muito deficientemente, o importante momento histórico que o Brasil e o mundo atravessavam e a própria caminhada que a Igreja latino-americana estava fazendo.”

Felizmente, tudo mudou a partir de 1971, quando cheguei em Porto Alegre e passei a morar e ter como Mestre de comunidade e professor de Filosofia Frei Cláudio Hummes, e quando os frades franciscanos começaram um trabalho de pastoral popular na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre e Viamão, ao qual fui me somar diretamente em 1977, como frade e morador da parada 13, Vila São Pedro, e que continua até hoje, 2024. Sinal disso é a decisão da Província Franciscana ter publicado em livro ´oficial´  minha memória e  reflexão crítica em 1974, poucos anos depois dos acontecimentos e fatos narrados.

Escrevi em 1974: “Mais adiante, no contato com a cidade grande, com outras visões de mundo, com as lutas sociais e os trabalhadores, alguns de nós felizmente abrimos os olhos e começamos a ver as coisas por outro ângulo de visão: o dos pobres e dos trabalhadores.”

Os anos 2020 não estão sendo fáceis, nem os próximos anos serão fáceis, todas e todos sabemos. As ditaduras continuam acontecendo no mundo, assim como os golpes, como o do Brasil em 2016, a democracia permanece ameaçada e a paz está muito longe de acontecer e ser realidade no cotidiano e no mundo. Muita luta, muita mobilização, muita Formação e Ação são necessárias para ´um outro mundo possível´, com muito ESPERANÇAR freireano.

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko