De quando em vez, ao acumularmos forças suficientes, é preciso enfrentarmos os monstros que nos habitam ou nos rondam, à espreita do momento para o bote traiçoeiro. E, ao fazermos esse movimento arrojado, que nasce da memória e do conhecimento historicamente sistematizado, precisamos expulsá-los, energicamente, para longe de nosso horizonte, de nossas subjetividades, de nossa História e memória coletivas que sangram, todos os dias, em um ciclo de sofrimento e dor inominável.
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O nome e sobrenome desse monstro? Ditadura empresarial-militar que, através de um violento golpe de Estado, em 1° de abril de 1964, exatas seis décadas atrás, pôs fim à experiência democrática e durante ao menos 21 anos perseguiu, violentou e tentou calar as vozes dissonantes que não se conformaram com as opressões e violências cometidas a partir da chamada Doutrina de Segurança Nacional.
A cor do sangue é vermelha
Uma nova historiografia vem revelando que não foram apenas os setores da vanguarda política e cultural, que se opuseram abertamente ao golpe, os atingidos pela ditadura. Foram centenas de milhares os atingidos e atingidas, trabalhadores(as) rurais, quilombolas, pessoas LGBTQIAP+s, defensores(as) dos Direitos Humanos, ativistas de causas sociais diversas.
Dezenas de povos indígenas tiveram suas terras expropriadas, foram submetidos a humilhações, perseguições, prisões arbitrárias, perda de emprego, ao “amansamento” e desaparecimento. Uma geração inteira teve sua formação ceifada na raiz.
Ditadura, nunca mais!
Segundo os três alentados e consistentes volumes do Relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014), que concluíram seus trabalhos sob o governo da presidenta Dilma Rousseff, cerca de 20 mil pessoas foram sequestradas e torturadas no período, 434 delas foram mortas pelo Estado brasileiro e milhares tiveram que buscar no exílio ou na clandestinidade formas de fuga da sanha persecutória. Centenas ainda estão na lista de desaparecimentos forçados.
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Estima-se que cerca de 500 mil pessoas foram investigadas através dos temidos inquéritos administrativos, Inquéritos Policiais Militares (IPMs), arapongagens e detenções no temido DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), aparato de repressão e tortura massiva sob o comando dos militares em conluio com as polícias civis nos estados. Universidades e escolas foram amordaçadas, a imprensa censurada, a cultura e as artes vigiadas com severidade, a liberdade encarcerada e a dignidade humana riscada dos dicionários.
Não é possível esquecer! Necessário lembrar, inclusive para que nunca mais aconteça! Essas feridas sangram, todos os dias.
Sem impunidade para os golpistas
Para que ela não se repita, para que não nos assombre novamente. Não é possível fazer-se de avestruz e enterrar a cabeça na terra e, em nome de uma duvidosa e instável governabilidade, ou em benefício de um revisionismo que suaviza tão temerário passado recente, apagar com borracha a História e fazer de conta que o monstro não está ali, dobrando a esquina, à espreita para um novo ataque. É preciso identificar e punir nossos algozes.
:: Coalizão pela Democracia: a marca e os apagamentos dos 60 anos do Golpe de 64 no RS ::
Pesquisas recentes demonstram que a decisão pela ruptura democrática em 1964 partiu da articulação entre setores do empresariado nacional ligados às multinacionais, políticos pertencentes ou ligados à economia agroexportadora, setores reacionários da Igreja Católica, setores das Forças Armadas e representantes do capital transnacional, com o apoio dos Estados Unidos. Identificá-los, nomeá-los e responsabilizá-los é imprescindível para que se faça Justiça e Reparação!
O esquecimento deliberado da barbárie é um desserviço à cidadania e, além de reforçar a impunidade, preserva os interesses de ontem e de hoje das classes dominantes e dos grupos a ela associados.
Um convite aos leitores e leitoras do Brasil de Fato
Queremos fazer aqui um convite, através do Brasil de Fato RS, aos seus leitores e leitoras sempre atentos às boas lutas, para se somar a uma iniciativa que vai na direção do teor anunciado neste artigo.
Nossa evocação é também celebrativa! Foi através de uma memorável campanha pelas eleições diretas para presidência do país, as Diretas Já, há quarenta anos, em 1984, que centenas de milhares de pessoas foram às ruas para participar de inesquecíveis e gigantescos comícios. Embora derrotados na pretensão inicial, fomos vitoriosas(os) quando ganhamos as ruas, os bancos universitários, a imprensa, o debate público e contagiamos corações e mentes para a necessária redemocratização do país.
Eis nosso convite
Entre os dias 26 e 27 de abril, a seção gaúcha do GT História e Marxismo da ANPUH e o Coletivo de Professoras e Professores de História da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (CPHIS) realizam o Seminário “60 anos do Golpe de 1964, 40 anos das Diretas Já”. A atividade ocorrerá no auditório do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Rua Sete de Setembro, 1020 - Centro Histórico, Porto Alegre).
As inscrições estão abertas até o dia 24 de abril para apresentadores, e até o dia 27 para ouvintes. Haverá certificação para as duas modalidades.
Programação
Na noite de 26 de abril, às 19h, um debate reunirá os professores pesquisadores Carla Rodeghero (Ufrgs), Graciela Bonassa Garcia (UFRRJ) e Nilo Piana de Castro (Colégio de Aplicação – Ufrgs). O debate analisa a ditadura empresarial-militar imposta ao país entre 1964 e 1985, além de refletir sobre as consequências do processo no tempo presente e examinar as características do processo de abertura política e a transição para a Nova República.
Na manhã do sábado, dia 27 de abril, o Seminário segue entre às 8h30 e às 12h30. Das 8h30 às 10h30, ocorrem duas oficinas. Uma delas fica a cargo da professora Regina Xavier (Ufrgs), que integra o Coletivo Memória e Luta. A ministrante vai explorar as estratégias utilizadas pelo coletivo para reparar atos da ditadura dentro da Ufrgs, como os expurgos de professores.
Outra oficina será ministrada pela diretora do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, a historiadora Ananda Simões Fernandes. Ela vai abordar a importância e as possibilidades do arquivo para pesquisas sobre a ditadura. Cada oficina terá uma hora de duração. Para participar, basta se inscrever no evento na modalidade ouvinte.
No fim da manhã, entre às 10h30 e às 12h30, pesquisadores em ensino, pesquisa e extensão, da Educação Básica à Universidade, são convidados a compartilhar suas experiências em assuntos relativos à temática geral do evento. Para participar nessa etapa, é necessário se inscrever na modalidade apresentação.
Coletivos em movimento
A iniciativa é uma parceria do GT História e Marxismo da ANPUH/RS e do CPHIS. O seminário também conta com o apoio do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul; a Associação Brasileira de Ensino de História (ABEH), da Assufrgs – Sindicato dos Técnico-Administrativos da Ufrgs, Ufcspa e Ifrs; a Coalizão 1964-2024 – Ditadura: Memória, Verdade, Justiça e Reparação, Não repetição; do Coletivo Memória e Luta; o Grupo de Pesquisa Aula Inacabada; o LHISTE/Ufrgs – Laboratório de Ensino de História e Educação; o Projeto PoAncestral; e o Simpa – Sindicato dos Municipários de Porto Alegre.
Inscrições
As inscrições, que são gratuitas, podem ser realizadas por meio do formulário disponível aqui.
Mais informações estão disponíveis no Instagram do GT, @gt_historiaemarxismo_rs. Dúvidas também podem ser enviadas para o e-mail do GT, [email protected].
* Pesquisadoras(es) e professores(as) de História, orgs. do Seminário 60 anos do Golpe de 64 e 40 anos das Diretas Já.
** Este é um artigo de opinião. A visão das autoras e autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira