Rio Grande do Sul

POVOS INDÍGENAS

Para todos os sentidos

O livro Kubai, o Encantado abre caminho para a valorização da diversidade e da inclusão

Porto Alegre |
Raquel, autora do livro Kubai, o encantado, é pedagoga e mestra em Educação pela Ufrgs - Foto: Clara Aguiar

“Era uma vez Kubai, um ser encantado, aventureiro e curioso, que criava coisas usando a magia das palavras.” Assim começa o livro infantil escrito por Raquel Kubeo, mulher indígena, amazonense, pedagoga e mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Quando criança, Raquel costumava se reunir com seus parentes mais velhos para ouvir os mitos que compõem sua ancestralidade. Crescida em meio à narração de histórias, se apaixonou pelos encantamentos da linguagem. Foi então que, na fase adulta, Raquel saiu de Manaus, no estado do Amazonas, e mudou-se para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, decidida a continuar os estudos sobre o universo literário. 

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Na tradição do povo Kubeo, que habita aldeias localizadas às margens do Rio Uaupés, no Amazonas, uma das mitologias milenares que vêm sendo transmitidas oralmente em volta de uma fogueira ou, simplesmente, em rodas, é a de Kubai – um ser com características divinas e criador dos animais e das plantas. Este saber repassado pelos ancestrais serviu de inspiração para que Raquel produzisse a obra Kubai, o Encantado, fruto da sua dissertação de mestrado. Além da vontade de perpetuar a memória coletiva de seu povo transformando-a em palavra escrita, Raquel estava obstinada a fazer algo ainda maior: adaptar a representação cultural do povo Kubeo às normas de acessibilidade, permitindo que a história pudesse ser lida, ouvida, assistida, tocada e sentida por qualquer pessoa, especialmente pelas crianças. 

Kubai, o Encantado foi escrito em português brasileiro, tukano e guarani, mediados por Comunicação Aumentativa e Alternativa (CAA), isto é, o livro possui versões em braille, com ilustrações táteis e personagens tridimensionais em feltro e entalhados em madeira. Tem também audiodescrição e tradução na Língua Brasileira de Sinais (Libras). A escolha pelas línguas indígenas tukano e guarani ocorreu porque a primeira é a língua falada pelos Kubeo e a segunda pertence ao povo Mbyá-Guarani, originário do Rio Grande do Sul, estado onde a obra foi desenvolvida. Com interesse especial pela literatura infantojuvenil e pela educação inclusiva diversa, Raquel acredita que o mundo mágico dos livros deve ser acessível para todos e em todas as culturas. “Crianças e adolescentes, com deficiência ou não, com dificuldade na comunicação ou não, têm o direito de conhecer as histórias indígenas”, afirma Raquel. 


A escritora Raquel ressalta que a aplicação de uma literatura de autoria indígena em ambiente escolar amplia o conhecimento sobre as culturas indígenas e a ressignificação de estereótipos. / Foto: Clara Aguiar

Por meio do mito de Kubai, ela demonstrou que é possível superar os obstáculos que dificultam o acesso a uma leitura mais diversa e acessível. A Lei nº 11.645/08 assegura que o estudo da história e cultura indígena seja obrigatório, estabelecendo a necessidade de incluir o ensino da cultura dos povos indígenas nas instituições de ensino no Brasil. Porém, potencializar o reconhecimento de livros destinados ao público infantil e juvenil que narram culturas indígenas e torná-los acessíveis para diferentes tipos de deficiência requer uma dedicação conjunta.

A acessibilidade na criação de um livro 

O processo de confecção do livro foi realizado pelo projeto Multi, pertencente ao Núcleo de Estudos em Políticas de Inclusão Escolar (Nepie) da Ufrgs e que tem como objetivo desenvolver uma literatura para todos por meio de livros em multiformatos. “É um trabalho de muitas mãos. Essa tessitura uns com os outros faz toda a diferença. Nós temos todas as possibilidades de produzir em multiformato, o maior desafio é o de financiamento. É a única coisa que nos falta”, comenta Cláudia Freitas, coordenadora do projeto e professora da Faculdade de Educação. 

Com o desejo de multiplicar a produção de exemplares, o projeto busca fomento do Ministério da Educação (MEC) e parceria com outras instituições. Para tornar tangível a experiência de leitura de Kubai, o Encantado, foi necessário compor uma equipe de profissionais como pedagogas, professores de educação especial, especialistas em design e consultores em deficiência visual. 

Gabrielle Vitória Morales, de 14 anos, foi uma das integrantes do grupo de consultores que tornaram Kubai, o Encantado mais inclusivo. A partir de sua vivência como pessoa com deficiência visual, ela participou de todas as etapas de adaptação de acessibilidade do livro. “Foi maravilhoso saber que tinha pessoas interessadas em fazer livros para todos. Eles me perguntavam como estavam as imagens, se estava bom, se faltava algo. O mais interessante também foi conhecer mais sobre a cultura indígena. Eu fiquei apaixonada, porque eu pelo menos não conhecia”, conta Gabrielle. 


Para Gabrielle, de 14 anos, livros em Comunicação Aumentativa e Alternativa são sinônimo de autonomia / Foto: Clara Aguiar

Para ela, livros que utilizam recursos da CAA proporcionam autonomia no acesso à leitura e às representações do mundo por meio do tato. Gabrielle conta que a possibilidade de manusear os objetos tridimensionais da obra  – como os animais retratados na história – facilita a sua identificação também em outros contextos, o que auxilia em seu repertório imagético. “A Comunicação Aumentativa e Alternativa só facilita a leitura, sem segregar. Com as imagens táteis, por exemplo, uma criança cega pode ler com a pontinha dos dedos”, explica Cláudia. A partir da história, um jogo de adivinhação em braile e com figuras táteis foi desenvolvido por Camila Della Passe Américo, mestranda em Educação pela Ufrgs e professora da rede municipal de ensino de Porto Alegre. 

Folheando a inclusão

No evento de lançamento, realizado em fevereiro de 2023, exemplares de Kubai, o Encantado foram distribuídos para mais de 30 escolas municipais de Ensino Fundamental de Porto Alegre. De acordo com Janaína Oppermann, professora especialista em Educação Especial Inclusiva na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Presidente Vargas – uma das instituições contempladas pela entrega do livro – , a aplicação de uma literatura em CAA em sala de aula é essencial para promover uma aprendizagem criativa e inclusiva. “Imagina ser uma aluna ou um aluno com deficiência e passar a primeira infância sem ter um livro acessível, o que isso não afeta na aprendizagem? Os livros táteis são importantíssimos pela questão do protagonismo”, comenta Janaína. “Pra mim é incrível, porque eu posso ler sem ninguém precisar estar lendo pra mim. Eu posso sentar e ler sozinha”, confirma Gabrielle.


Um jogo de adivinhação em braile e com figuras táteis foi desenvolvido a partir da história de Kubai, o Encantado por Camila Della Passe Américo, mestranda em Educação pela Ufrgs / Foto: Clara Aguiar

A escritora Raquel ressalta que a aplicação de uma literatura de autoria indígena em ambiente escolar amplia o conhecimento sobre as culturas indígenas e a ressignificação de estereótipos. “Antigamente, infelizmente, as crianças nas escolas aprendiam a fazer um cocar de papel, fazer barulhos com a mão na boca imitando indígenas, e isso é desrespeitoso, mas hoje a escola já tem feito um outro tipo de educação.” No entendimento de Raquel, ao folhear as páginas de Kubai, o Encantado, as crianças e os adolescentes, indígenas ou não, com deficiências ou não, podem sentir os encantos de sua cultura milenar. O livro não é comercializado, mas a sua versão em e-book e em CAA está disponível gratuitamente no site do projeto Multi.

* Reportagem originalmente publicada na revista Sextante, do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). 


Edição: Marcelo Ferreira