Foram décadas tenebrosas, quem hoje defende a Ditadura desconhece a história trágica do Brasil
O dia 1º de abril de 2024 marcou os 60 anos do golpe civil-militar (1964), o qual manteve o país sob uma ditadura que suprimiu a democracia brasileira por mais de duas décadas, trazendo consigo impacto social e político para o país, assim como centenas de mortos e desaparecidos políticos.
A imposição de uma ditadura odiosa impediu o programa patriótico de reformas estruturais proposto pelo presidente João Goulart. Foram decretados, através dos Atos Institucionais, destacado o AI-5, a supressão de direitos e garantias individuais.
Milhares de políticos, trabalhadores, estudantes, religiosos foram perseguidos, torturados e assassinados. O direito ao voto foi retirado da população e a liberdade de opinião da imprensa foi restringida com uso da censura. Jornais foram fechados para além da prática de atentados contra pessoas em sedes de entidades de classe, como a OAB-RJ.
Contudo, para quem imagina que os “anos de chumbo” pesaram somente para as pessoas que viviam nas grandes cidades, ledo engano. Há que se tomar conhecimento da Comissão Camponesa da Verdade (CCV), criada por universitários e amparada por entidades e movimentos sociais para trazer à tona as violações pouco vistas ao campesinato brasileiro, incluindo agricultores, quilombolas e indígenas que viviam no meio rural e sofreram pelos desmandos de uma ditadura cruel. Em 2015, a CCV já havia anunciado que “1.196 camponeses foram mortos ou desapareceram de 1964 a 1985”.
Para os povos originários também há uma subnotificação sobre os crimes cometidos pelo Estado, próprio de um regime de exceção, que nega as suas atrocidades e não permite críticas. Não por acaso o lema da ditadura foi "Brasil: Ame-o ou deixe-o". Na ditadura estima-se que foram 8.350 indígenas mortos, mas se reconhece que atingiu um número expressivamente maior (BRASIL, 2014, p.205).
No primeiro período da ditadura, ocorreram as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul (1967) e na Câmara dos Deputados (1968) sobre a questão indígena. Identificaram inúmeras violações do Estado sobre essas populações originárias, mas não encontraram eco na sociedade e demais instituições sob o manto cinza de uma ditadura em ascensão.
Assim, a Lei de Segurança Nacional e o AI-5, em 1968, período mais repressivo dos governos militares, desfez a CPI da Câmara, por cassar deputados membros, impossibilitando a conclusão dos trabalhos. Já o famoso “Relatório Figueiredo” (1967), que também registrou inúmeros crimes cometidos contra os indígenas do Rio Grande do Sul, misteriosamente sumiu e só veio a reaparecer em 2012.
Sendo assim, o final da década de 1960 e a década de 1970 foi um período de intensificação das violações dos direitos dos indígenas. Projetos de caráter integracionista, que buscavam o apagamento das línguas, da cultura, do modo de ser dos povos originários foram implantados. Por exemplo, o Projeto Soja, arrendando terras indígenas, causa conflitos nos territórios até hoje.
A partir dessas informações, o CEDH-RS recomendou em 2022 a criação de uma câmara técnica interinstitucional para atuar nos conflitos e violações de direitos que ocorrem nas terras indígenas no Norte do Rio Grande do Sul (Recomendação CEDH/RS n. 47/2022). Entendendo que a causa maior é a ingerência externa, causando desagregação social, emitiu o Parecer CEDH-RS nº 02/2022, que tratou da inconstitucionalidade e ilegalidade de arrendamentos em terras indígenas. Matéria também enfrentada pela Recomendação nº 25 de 10 de junho de 2022, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
No Rio Grande do Sul, pode se dizer que a marca da ditadura nas terras indígenas foi o cerceamento do direito de ir e vir, a proibição de falar a língua, a degradação ambiental, as remoções forçadas, o trabalho análogo à escravidão, as torturas e as prisões ilegais, dentre tantas outras violências do modo de operar ditatorial. A Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados de 1977 e o relatório do Conselho Indigenista Missionário comprovam isto.
Nessa toada, o Ministério Público Federal do RS, após inquérito civil, confirma as violações descritas com o ingresso, neste ano, da ação civil pública para que a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Rio Grande do Sul sejam condenados a reparar os danos coletivos de natureza material e moral sofridos pelas comunidades indígenas Kaingang e Mbyá-Guarani.
A ação jurídica proposta não é a primeira em território nacional sobre as graves violações à população originária na ditadura, de modo que sobressai o esforço da procuradoria, com contribuição da sociedade civil e outras instituições públicas na atuação para levantar históricos e depoimentos que comprovam as atrocidades que não queremos mais ver em nossa sociedade.
Mesmo considerando ações como essa, é fato que os indígenas brasileiros carecem de uma efetiva reparação sobre o que ocorreu na ditadura. Hoje as únicas ações judiciais concluídas foram sobre os Akrãtikatêjê Gavião e Krenak. Há ações judiciais em trâmite em relação ao que ocorreu com os Waimiri-Atroari no Amazonas e Roraima; aos Guarani Mbya e aos Kaingang, no Rio Grande do Sul; e os Avá-Guarani, por causa da construção da Hidrelétrica de Itaipu, no Paraná.
Os desafios da implementação da nossa Constituição Federal, e dos nossos direitos civis e políticos no país, são imensos. Para além das ações citadas, recentemente a Comissão de Anistia reconheceu as graves consequências da ação e omissão estatal durante o período ditatorial contra membros das etnias Krenak e Guarani-kaiowá. Ajoelhada, a representante do Estado brasileiro pediu desculpas aos povos originários. Contudo, ainda em aberto o questionamento, o que o Brasil faz para efetivamente reparar os danos causados aos indígenas?
Há que contar essas e outras histórias, pois, como já dito, passamos por um golpe de Estado atroz. Por isso, a Rede Brasileira de Educação e Direitos Humanos tem se empenhado em provocar esse debate, aliada ao Conselho Estadual de Direitos Humanos, Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do MPF, Comissão de Cidadania e DH da Assembleia, diversas universidades e associações gaúchas que se reuniram para elaborar mais de 60 atividades com o objetivo de relembrar a data que marca os 60 anos da ditadura civil-militar.
Ancorados por Memória, Verdade, Justiça, tal articulação interinstitucional e com a sociedade civil formou uma coalizão pela democracia, organizando um calendário unificado, através de encontros que debateram o tema contando com a presença de diversos atores, incluindo ex-presos e perseguidos políticos. As ações têm como finalidade refletir sobre o valor da democracia, os fatos ocorridos na ditadura militar no Brasil, buscando a criação e o resgate de memórias.
O pré-lançamento dessa coalizão ocorreu no dia 27 de março, na casa Diógenes Oliveira. Local que leva o nome de um combativo militante da resistência à ditadura militar e da campanha da Legalidade. O ato cultural contou com a presença do artista Pedro Munhoz que nos fornece com sua boa música o comprometimento com as causas sociais.
O triste momento da história nacional pode ser contado também com alegria, pois aquelas pessoas que tiveram a força de espírito de discordar da ordem vigente, propuseram justamente a liberdade do povo, com arte, cultura e música. Foram décadas tenebrosas, quem hoje defende a Ditadura ou desconhece a história trágica do Brasil desse período é inimigo da democracia, da liberdade, dos direitos do povo e da soberania do nosso país.
Referências bibliográficas:
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* Júlio Picon Alt - Presidente do Conselho de Direitos Humanos do Estado do Rio Grande do Sul (CEDH-RS), Doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/Ufrgs), membro do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e da Acesso Cidadania e Direitos Humanos.
** Rodrigo de Medeiros Silva - Integrante do Fórum Justiça, entidade Conselheira de Direitos Humanos (CEDH-RS); membro da Comissão de Direitos Humanos e Povos Indígenas do CEDH-RS, do Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais e da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares; Ouvidor- Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul; e doutor em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle.
*** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko