Somos chamados a não silenciar, a não permitir que a história se faça alterada
O mês de abril nos traz o outono. É um momento de maturidade.
Com suas cores, com as mudanças da luz... e, pelo menos aqui no Sul, com os primeiros sinais do frio.
É um período que nos empurra para revisão de fatos, para reflexões sobre o que nos espera e para o estabelecimento de ligações entre o que fizemos ou deixamos de fazer, e que nos permitiu merecer ou temer o que se desenha para o inverno.
E no Sul, como aprendemos desde muito cedo, não se deve brincar com o inverno. Ele é de matar.
Parece haver, nesta perspectiva biológica imposta pelo frio, algo que nos coloca, mal comparando, na condição dos protagonistas daquela fábula da cigarra e da formiga. Quem não lembra?... “só fez cantar? pois então que agora dance”!
E enquanto a cigarra, ingenuamente descuidada, morria de frio, a formiga, que se antecipou às ameaças, que fez o possível para assegurar proteção aos valores que definem seu formigueiro, se recolhia e aguardava o reascenso das forças que orientariam suas lutas.
Acredito que fábulas como esta nos permitem, desde a infância, interiorizar aprendizados de enorme utilidade para toda a vida. Afinal, a possibilidade de antecipação consciente e efetiva ao caos, antes que ele se instale, sempre dependerá do reconhecimento de seus primeiros sinais. E a memória, o aprendizado com erros e acertos do passado, tem tudo a ver com isso.
Enfim, neste mês de abril, temos bons motivos para pensar desta forma.
Vejamos, para ficar em apenas dois fatos, atividades que intentam não nos permitir esquecer dos crimes do golpe militar de primeiro de abril de 1964 nem do massacre de Eldorado do Carajás, de 17 de abril de 1996.
No primeiro caso, recomendo acesso a informações sobre atividade intitulada Ditadura: Memória, Verdade, Justiça e Reparação – Não Repetição, organizada em Porto Alegre pela Coalizão Brasil por Memória, Justiça, Reparação, Verdade e Democracia. Promovido pela Associação Juízas e Juízes para a Democracia, o evento trouxe (nas falas de Antonia Mara Loguercio e João Pedro Stédile, ver aqui) evidências de que a ocultação da realidade histórica interessa apenas aos que se beneficiam da violência de Estado, do uso da tortura como método de investigação, das mentiras institucionais e do medo paralisante, que dão base à expropriação de direitos e à manutenção do abismo social vigente neste país. São aqueles que, com diferentes roupagens estão aliados a todos os golpes, e se mantém à espreita, para o próximo.
Lembrando que a democracia torna mais fácil a luta para contenção das iniquidades que aquelas forças pretendem desencadear, os expositores reclamaram apoio à conscientização social deste fato, bem como para a necessária construção de um projeto coletivo de desenvolvimento nacional.
Uma vez que o MST se destaca entre as formas mais longevas de organização social em luta para consecução daqueles objetivos, e que por tradição desencadeia em abril ações de visibilidade à ociosidade de terras que não cumprem sua função social constitucional, bem como em defesa de um projeto nacional de reforma agrária popular que articule necessidades das populações rurais e urbanas, chegamos ao segundo fato apontado no início deste texto.
Percebe-se que articulação entre parlamentares golpistas e a mídia corporativa vem incrementando tentativas de distorção das atividades anualmente desenvolvidas pelo MST, em especial daquelas associadas ao Dia Internacional de Luta Camponesa (7 Pontos que você precisa saber sobre o "Abril Vermelho" do MST). O abril vermelho é incômodo àqueles interesses. Neste mês se faz difícil ocultar anúncios de desrespeito à Constituição federal e sua relação com crimes contra a humanidade ocorridos a 17 de abril de 1996, quando em defesa de um latifundiário, 69 trabalhadores e trabalhadoras rurais foram feridos e 21 foram assassinados pela policia militar do Pará.
A distorção da realidade, neste caso, objetiva impedir que a consciência popular apoie um processo voltado ao fortalecimento de aspirações nacionais. Neste ano, as mais de 50 ações do MST desenvolvidas em abril, em 17 estados da federação brasileira, ao invés de afrontar direitos como alguns insistem, trazem à luz deveres da República. Elas apontam descaso a atribuições constitucionais (O Direito à Terra: uma defesa da Reforma Agrária Popular | Opinião) que, se respeitadas, permitirão avanços importantes no rumo do combate à fome, com produção de alimentos limpos, de base agroecológica e com proteção ambiental.
E é neste sentido que somos chamados a reviver nossas tragédias coletivas, a não silenciar, a não permitir que a história se faça alterada em favor de interesses opostos aos compromissos de civilidade.
Se não o fizermos, enquanto repetirmos por comodismo, por ignorância, por medo ou por conveniência os erros do passado, aqueles crimes se perpetuarão.
Para encerrar, como as formigas, devemos encarar o inverno que se desenha. Ameaça permanente e recursiva, que reclama antecipação de medidas, fortalecimento de alianças e penalização dos criminosos. E devemos fazer mais, agindo como as cigarras, sem permitir que as formigas esqueçam da importância da alegria, dos cantos e da poesia.
E fazer isso juntos, como os organizadores da atividade Ditadura: Memória, Verdade, Justiça e Reparação – Não Repetição que, ao encerrar suas atividades com Victor Jara, cantando, de Daniel Viglieti, A Desalambrar, evidenciaram que todas as lutas são, em verdade, uma só, solidária, global, em defesa da emancipação humana. Sem anistia!
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko