O projeto de lei complementar (PLP 12/2024) enviado pelo governo federal ao Congresso, sobre a regulamentação do trabalho por aplicativos de transporte, não reconhece nem estabelece vínculo trabalhista entre motoristas e plataformas. Tampouco abre um guarda-chuva de proteção social como direito ao FGTS, vale-alimentação, plano de saúde, jornada semanal de trabalho, férias, folga remunerada ou qualquer outra garantia. Por que então causou tanta fúria na base bolsonarista?
A proposta de regulamentação estabelece um acordo mínimo entre plataformas e representantes dos motoristas reconhecendo o trabalho autônomo. Bem distante das pretensões do programa de governo apresentado nas eleições de 2022, que defendia “revogar a reforma trabalhista e a liberalização da terceirização, e todas as medidas que significaram a retirada de direitos. Precisamos caminhar para uma situação de assegurar direitos trabalhistas e previdenciários a todos e todas que trabalham”. Por que então é considerado um “atentado à liberdade empreendedora”?
Sobre as novas formas de trabalho mediadas pelas tecnologias, o programa de governo de Lula de 2022 propunha “estabelecer um sistema de regulação pública isonômica, que busque incorporar todas as novas formas de alocação da força de trabalho e assegure a renda e o direito ao trabalho, garantindo proteção social a todos e todas, superando a natureza desequilibrada das relações de trabalho”. Em 2023, o governo federal montou um grupo de trabalho tripartite, com a representação das plataformas, dos trabalhadores de transporte e entrega para debater um projeto de regulamentação.
O projeto de lei que regulamenta o trabalho por aplicativos de transporte foi o “mínimo denominador comum” ao final de um ano de reuniões e negociações, onde as plataformas pouco cederam. Os avanços conquistados, com muita firmeza dos representantes dos trabalhadores, garantem o direito à previdência social, auxílio saúde em caso de acidentes ou doenças prolongadas, auxílio maternidade, e o direito à remuneração mínima. Esse pequeno lote no latifúndio da desregulamentação promovida pelos governos golpistas de Temer e Bolsonaro foram suficientes para servir de estopim para os ataques da extrema direita liberal.
Antes que o projeto de lei fosse de amplo conhecimento público, as fake news lhe precederam. Os “engenheiros do caos”, como bem explica Giuliano Da Empoli, viram a ocasião perfeita para abrir um flanco de ataque ao governo Lula e à luta sindical, ou ao que sobrou dela. O fato do projeto destinar-se a uma classe trabalhadora pulverizada e fragmentada, que não se reconhece como classe, é um grande obstáculo a um debate sério sobre seus possíveis avanços ou retrocessos. É preciso compreender que boa parte dos motoristas que atuam nestas plataformas se organizam não em sindicatos ou associações, mas por grupos de Whatsapp, terreno sobre o qual a patrulha ideológica bolsonarista tem grande domínio.
A extrema direita liberal e golpista, que governou o país com Temer e Bolsonaro, defende a máxima desregulamentação do mundo do trabalho. Com sua capacidade de manipulação da opinião pública, sob ação dos engenheiros do caos, transforma ataques como precarização, terceirização em sinônimos de liberdade. Fazem do desempregado um empreendedor. Convence a pessoa que trabalha de dia para comer de noite que ela tem autonomia sobre a sua jornada de trabalho. Portanto, qualquer sinalização que possa representar avanço, ainda que pequeno, mesmo com o aval das plataformas, vira arma na guerra contra a organização sindical e contra o governo que derrotou o fascismo nas eleições de 2022.
Afinal, para quem passou na reforma trabalhista que o negociado vale acima do legislado, a própria ideia de ter uma legislação já parece uma ameaça. Mesmo que a própria proposta de legislação seja fruto do negociado. O projeto de lei em discussão no Congresso está muito distante do que seria um programa máximo da esquerda na proteção social e na garantia de direitos dos trabalhadores. Está a léguas de fechar as torneiras da desregulamentação. Há quem ache que a proposta pode, inclusive, ajudar a aumentar a vazão num mercado cada vez mais impregnado pela pejotização em diversas categorias. Ainda assim, desperta a sanha totalitária dos que se alimentam da superexploração da força de trabalho e que não admitem nem um centavo de lucro a menos.
Voltando à pergunta inicial sobre o que incomoda tanto a direita neste projeto? Arrisco dois motivos. Primeiro, o projeto vai na contramão da busca da direita, não somente a brasileira, de suprimir os sindicatos como instrumentos de luta dos trabalhadores, na medida que legitima os sindicatos como representantes da categoria dos motoristas de aplicativo. Segundo, a tentativa de estabelecer patamares mínimos como jornada, remuneração mínima e contribuição previdenciária é como se o governo estivesse tirando do bolso do "trabalhador" para engordar o Estado.
É o desprezo para tudo que é público, mesmo que seja este público que vai lhe garantir renda quando não puder trabalhar. Mesmo que seja este público que vai lhe garantir uma alternativa de aposentadoria para não trabalhar até morrer.
* Jornalista e licenciada em Ciências Sociais.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Marcelo Ferreira