Rio Grande do Sul

Coluna

Projeto de Lei n°154/2023: Restrições e Sanções aos ocupantes em Terras Urbanas e Rurais no RS

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"A contradição da construção de novas moradias, que permanecem vazias, e da persistência do déficit habitacional está crescendo" - Foto: Nicolas Endrius Torres Lopes
O número de imóveis vazios quase dobrou no Rio Grande do Sul no intervalo de 12 anos

O Projeto de Lei n°154/2023, de autoria do deputado estadual Gustavo Victorino (Republicanos), busca impor sanções e restrições aos ocupantes e invasores de propriedades rurais e urbanas no Estado do Rio Grande do Sul. Após ser incluído na agenda das últimas sessões da Assembleia Legislativa, nos dias 2, 9 e 16 de abril, está previsto voltar à pauta no dia 23 de abril de 2024.

O Projeto de Lei propõe vedar o acesso de ocupantes e “invasores” de propriedades urbanas e rurais a qualquer auxílio, benefício ou participação em programas sociais estaduais. Bem como vedar sua nomeação para cargos públicos efetivos, em comissão ou políticos na Administração Pública Direta ou Indireta do Estado do Rio Grande do Sul. E ainda, qualquer tipo de contratação direta ou indireta com o poder público estadual.  

A legislação proposta faz uso dos termos de “ocupantes” e “invasores” de propriedades, como os enquadrados nos arts. 150 e 161, § 1º, II, do Código Penal. Esses artigos tratam das punições a quem entra ou permanece em casa alheia, de quem suprime ou desloca tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia.

A proposta prevê a identificação do invasor e do ocupante pelo poder público, o que propicia punições individuais para atos coletivos organizados para enfrentamento da desigualdade ao acesso à terra e à moradia. O fato de possibilitar a identificação das pessoas que estão nas ocupações, facilita ações de perseguição a lideranças comunitárias e de movimentos sociais. Em um país que mais assassina ativistas ambientais e fundiários, segundo dados analisados de 2012 a 2021 da ONG Global Witness, a possibilidade de identificação nominal de ocupantes significa gerar riscos às vidas dos sem-terra e sem-teto do Rio Grande do Sul.

A justificativa do projeto de lei expõe claramente sua motivação: proteger o agronegócio e a propriedade privada. Argumenta-se que o Rio Grande do Sul, como um dos maiores centros de agronegócio do país, tem sido historicamente alvo de “invasões e ataques” por grupos que se identificam como movimentos sociais, os quais, segundo a justificativa, têm perpetrado violência e ameaças.

O alto índice de violência decorrente de disputas fundiárias em nosso estado é evidente. No entanto, ao analisar os dados, fica claro que as principais vítimas dessas violências são a população pobre, os povos originários e os quilombolas.

Um dos grupos mais atingidos pela violência são os povos originários, que historicamente tem suas terras usurpadas pelos latifundiários. Segundo o Relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Rio Grande do Sul liderou o ranking nacional em conflitos indígenas relacionados a direitos territoriais em 2021 e 2022. Em 2022, foram registrados 27 conflitos no RS, correspondendo a 17% do total nacional.

Esses conflitos frequentemente resultam em violência e violações dos direitos indígenas, incluindo casos de assassinato, ameaças, abuso de poder e racismo. Apenas em 2021, foram documentados 114 casos de violência ou violação de direitos indígenas no estado do RS, colocando-o como o sexto estado do país em número de mortes registradas. Esses dados destacam a gravidade das tensões territoriais na região e a vulnerabilidade dos povos indígenas frente às ações ilegais praticadas contra eles.

Apesar de a justificativa focar em áreas rurais e na defesa do agronegócio, a Proposta de Lei (PL) abrange também o território urbano, no qual observamos um aumento na financeirização da cidade e na construção de imóveis destinados à especulação imobiliária. De fato, o cerne da PL reside na defesa da propriedade privada e do capital, tanto nas áreas urbanas quanto rurais, incluindo as faixas de domínio das rodovias estaduais e federais delegadas ao estado.

No RS, assim como em muitas regiões do Brasil, enfrentamos um desafio significativo relacionado à habitação, com a contradição de um número substancial de imóveis vazios e um déficit habitacional considerável. O número de imóveis vazios quase dobrou no Rio Grande do Sul no intervalo de 12 anos. O estado registrou 604.277 domicílios vagos em 2022, enquanto, segundo o levantamento da Fundação João Pinheiro (FJP), o déficit habitacional é de 220.927 (65.275 em habitação precárias, 34.073 em coabitação e 121.579 em ônus excessivo com aluguel).

A situação da moradia na capital gaúcha, repete a situação do estado e o déficit habitacional na Região Metropolitana de Porto Alegre é estimado em cerca de 90 mil moradias, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP), número inferior ao de imóveis vagos na metrópole. O assunto já foi tratado anteriormente nesta coluna.

A contradição da construção de novas moradias, que permanecem vazias, e da persistência do déficit habitacional está crescendo. A produção contínua de imóveis não está diminuindo o déficit habitacional; pelo contrário, apenas amplia a disparidade social onde há mais imóveis desocupados do que pessoas sem-teto. Essa situação provoca um aumento das contradições sociais e econômicas, e também a resposta social de resistência a esta lógica através de movimentos de ocupações.

O direito à moradia digna é um princípio fundamental reconhecido e implementado como parte essencial da dignidade da pessoa humana. Desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e posteriormente na Constituição Federal de 1988, por meio da Emenda Constitucional nº 26/00, esse direito é reconhecido. O artigo 6º da Constituição Federal assegura o direito à moradia, juntamente com outros direitos sociais, como educação, saúde e trabalho. Além disso, a Constituição Federal garante a igualdade perante a lei e estabelece que a propriedade deve cumprir sua função social, conforme previsto no artigo 5º, inciso XXIII. No entanto, a contradição entre o direito constitucional à moradia e a realidade da falta de habitação adequada persiste, bem como a contradição do dever da propriedade cumprir função social e da existência de milhares de propriedades sem função social.

A contradição gerada pelo sistema capitalista, alimentada pela acumulação desproporcional de imóveis e terras, só pode ser atenuada por meio de uma distribuição mais equitativa. A solução reside na implementação de uma reforma urbana e agrária, conforme preconizado pelos movimentos sociais. No entanto, conforme há o tensionamento e conflito entre os interesses populares e do capital, há propostas de políticas estatais que buscam proteger a propriedade privada e implementar medidas de controle social para reprimir os movimentos sociais que advogam por tais direitos e reformas.

Os dados do Censo mostram que precisamos rediscutir a política habitacional que vem sendo adotada nos últimos anos. Será que o Estado ao invés de focar em medidas de controle social, como a repressão às ocupações, não deveria justamente voltar-se para adoção e ampliação de políticas públicas que promovam a função social da propriedade? Será que o dever da sociedade não é justamente priorizar o acesso à moradia digna para toda população?

Precisamos de propostas que tenham suas justificativas diretamente associadas à constituição federal, que prevê o direito social à moradia e a necessidade de função social da propriedade. Somos um país que foi colonizado e fundado a partir da violência, com a exploração e tentativa de submissão  dos povos originários e negros.  Há uma necessidade histórica de reparação para quem teve seu direito ao acesso às terras anteriormente negado. E essa reparação vem através do direito ao acesso à terra, da reforma urbana e agrária.

* Helena Andrade Ew, graduanda de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko