Rio Grande do Sul

Coluna

O mês de março e algumas reflexões

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"Carolina é vertente de ancestralidade, lembrada com mais ênfase em março, 14 de março, seu aniversário, é Dia Nacional da Poesia" - CCSP
Muitas de nós passamos a escrever com segurança, após ler Carolina

Do meu lugar na periferia, observo através da cortina a chegada do outono.   

Já é abril. 

O tempo se esvai de forma rápida e entre tantos acontecimentos, nos distrai, e passa. 

Mesmo com um certo atraso desejo desabafar, contar o que nos marcou, e é ainda sobre o mês passado, também sobre mulheres, mulheres pretas, sobre nós todas. É sobre Marielle Franco e Carolina Maria de Jesus.   

Tento não me distrair olhando para a cortina estampada com símbolos africanos que ganhei quando estive em Salvador, já faz alguns anos.  

Repararam que estou disfarçando para não entrar no assunto?  

Carolina Maria de Jesus, a semeadora de sonhos. 

No dia 14 de março de 1914 nascia em Minas Gerais, Sacramento, Carolina Maria de Jesus.   

Esta mulher chegou com uma grande missão: modificar o mundo através da leitura, escrita, assim conscientizando de forma positiva, principalmente mulheres pretas moradoras das Favelas.  

Para isso usou a ferramenta livro.   

Semeou milhares de sementes através de suas obras que foram muitas além do título mais conhecido e divulgado “Quarto de Despejo - Diário de uma favelada”, trago para o texto a fala de Dalva Maria Soares, também mineira, antropóloga escritora e estudiosa da obra de Carolina, ela diz:  “Carolina nunca foi uma favelada escritora, e sim uma Escritora colocada na favela pelas mãos do racismo, é hoje uma das imortais, lida e citada em todo o mundo”.   

Carolina Maria de Jesus representa para nós, o poder da mulher preta periférica, a força da palavra brotando dentro de cada uma de nós, a mesma nunca esqueceu de espalhar seus ensinamentos, esperta, percebeu que dessa forma criaria mudas de resistência e autoconhecimento. Acertou. 

Muitas de nós passamos a escrever com segurança, após ler Carolina, eu particularmente carrego um imenso orgulho de tê-la como presença ilustre em minha caminhada assim como em minha estante. Ao citá-la conservo o verbo presente, pois a sinto de fato aqui e agora.  

Toda sua imensa obra é marcante, penetra em nossa alma com força nos dando coragem para seguir em frente, buscando através do conhecimento outra visão de mundo. 

Carolina, não se deixou escravizar, suas mãos souberam muito bem espalhar brotos de coragem. Em certa feita foi chamada de feiticeira pela vizinhança, pois imaginavam que uma preta favelada saber ler e escrever, só poderia ser feitiçaria.   

Pois era uma feiticeira das estórias de vida.  

A paixão pela leitura a levou a escrever, a magia das letras e palavras foram seu encantamento somada a muita dedicação e coragem.   

A arte com toda certeza chega para quem está disposta a recebê-la com respeito e dedicação. Somos muitas Carolinas espalhadas por este mundo.  

“... vou colocar teu nome em meu livro...” dizia. E colocou muitos nomes em suas obras, hoje eternas. Poemas, músicas, contos, roteiros, diários, cartas, romances.  

Carolina é vertente de ancestralidade, lembrada com mais ênfase em março, 14 de março, seu aniversário, é Dia Nacional da Poesia.  

“... Em 1948, quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos...”  

Carolina Maria de Jesus  

O escrito acima nos lembra quase os dias de hoje. 

Carolina Maria de Jesus : 14/03/1914 - 13/02/1977 : PRESENTE. 

Muitas mulheres pretas de agora, principalmente as escritoras, me fazem lembrar a Carolina dos direitos civis, direitos humanos, direito a saúde, educação, segurança e moradia.    

No tempo de agora estamos ocupando o Congresso e bancadas com nossas falas exigentes, trazemos documentos legais, direitos adquiridos e diplomas. 

Uma das sementes de Carolina foi a quinta vereadora mais votada no Rio de Janeiro.


A vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ), assassinada em 2018 / Nunah Alle/Mídia Ninja/Flickr

Seu nome: Marielle Franco – Socióloga, Mulher Negra, lésbica, e “cria da favela” assim se denominava. 

Assume orgulhosamente o cargo em 2017.  “Valeu a pena toda essa luta” deve ter pensado enquanto ocupava a bancada aceitando o microfone que lhe foi oferecido.  

Quando uma mulher negra fala o resto do mundo silencia.  

Esses momentos para nós, são marcantes, já que há algumas décadas, éramos impedidas por lei de frequentar as escolas. 

A posse de Marielle é porta aberta para as que virão a seguir.   

A emoção e alegria é nossa, o ódio e a repulsa, deles.  

Quem é Marielle Franco? de onde surgiu essa Ser humana, com essa potência? Com toda essa coragem? Mulher que gesticula enquanto fala, encanta e pede silêncio. “Que falta de respeito conosco, somos maioria aqui (homens brancos e héteros), acho bom tomar cuidado” talvez dissessem os olhares em silêncio. 

Esta mulher assim como Carolina soube com grandeza espalhar ensinamentos, regou e viu brotar rebentos de coragem, sorriu e se orgulhou em momentos lindos de realização. Infelizmente seu tempo foi curto, apenas suficiente para organizar uma legião de mulheres que esperavam alguém com sua força para lhes dar a mão.  

Marielle assim como Carolina entendia profundamente a causa da fome na favela, conhecia a carência e o abandono. Por isso exigia, pedia mudanças na base, através da valorização das mulheres pretas, as mais atingidas pelas violências criadas e permitidas pelo Estado racista em curso desde sempre.   

Março é mês de renascimento. Março é mês de reflexão. Deixo de ser egoísta e escrevo o que o balanço da cortina me trouxe, todo momento é hora para espalhar palavras mundo à fora.  

Devemos entender o quanto é fortalecedor e necessário conhecer as histórias escritas por nossas iguais, ouvir lendo seus lábios, ser personagens em suas tantas cartas e livros.  

Marielle escreveu um livro e partiu. Forçosamente nos deixou. Atualmente regamos suas mudas entre lágrimas pelas que partiram e sorrisos pelas que se aproximam do pódio. 

Eles não nos querem lá e avançam rápido, tão rápido quanto o tempo.  

Marielle, com certeza, se inspirou em Carolina, também Carolina se inspirou nas que vieram bem antes, antes até de Dandara (entendedores, entenderão), foi inspirada para seguir sem medo. Marielle é a jovem Carolina exigindo melhorias, lutando pelo fim da violência, pedindo voz para as Favelas, valorizando as trabalhadoras que “escravizadas na base” continuam carregando nas costas um país que as rejeita. Marielle está por essas brasileiras, aqui deixou plantada uma obra humanitária.  

Pois no dia 14 de março de 2018 seu legado termina.  

Foi vereadora apenas entre janeiro de 2017 e março de 2018.  

Partiu forçosamente. A mão assassina do Estado decidiu dar um basta em sua trajetória de luta.  

Março é mês de renascimento.    

Precisamos prestar atenção, existem Carolinas e Marielles entre nós! 

Março é mês de renascimento.   

PRESENTE. 27/7/1979 - 14/03/2018. 

* Fátima Farias, Nasceu em Bagé, RS. É cozinheira, poeta, compositora e educadora social. Reside na zona Leste de Porto Alegre. Participa de coletivos e saraus. Com três títulos publicados pretende seguir em frente com seus livros: Mel e Dendê-Poemas 2020 libretos/ Um Poema por Dia-Poemas-Iel/Santasdecasa-Prosa/libretos. E-mail- [email protected].

* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko