Ser humano não é ser leve. Fingir que a leveza nos integra parece ser mais um peso que carregamos
O discurso social atualmente exige do indivíduo uma existência leve que se levada a cabo pode beirar ao adoecimento. Na era do "pense positivo", todo sofrimento é deslegitimado. Aquele que sofre não tem mais espaço. Sempre ver o copo meio cheio tornou-se um imperativo. Queixar-se de um sistema disfuncional, ficar deprimido diante de um mundo extremamente individualista, questionar o status quo onde a segregação e a exploração de corpos são normalizadas tornou-se contraproducente.
"Não pense em crise, trabalhe", enunciado pelo vampirão neoliberalista, é a materialização de uma ideia central que atravessa nossa história. Afinal, cabeça vazia é a oficina do diabo. Produzir, manter-se ocupado, lavar a louça e limpar a pia. A regra é clara: basta silenciar a humanidade que nos constitui e a vida se torna simples. Quem está ocupado fazendo dinheiro não tem tempo para sofrer. Sofrimento é sintoma de desocupado, é falta de deus, falta do que fazer, é falta. Sim, se tem algo que concordo com tudo que foi escrito acima é que se deparar com a falta causa sofrimento.
Mas é essencial entender que a falta é constitutiva do ser. Nós também nos construímos a partir de privações, frustrações e castrações. Nossa existência também é moldada pelo negativo. Reconhecer isso é libertador. A vida é assim mesmo, e agora, o que faremos? Falar sobre a dor de existir alivia, permite a cicatrização da ferida infeccionada que nos habita. A palavra é o bisturi que opera o traumático, aquilo que tanto nos machucou e continua machucando sempre que retorna à mente. Falar, falar e falar é a possibilidade de que um dia a história seja contada de outra maneira. Como disse uma grande amiga minha: contei tanto essa história que ela mudou. E sim, é possível também mudar o passado, ressignificá-lo.
Mas a sociedade tem se tornado surda para a temática da dor. Quem sofre não produz, torna-se uma engrenagem falha no sistema capitalista, portanto, passível de descarte. Do luxo ao lixo, basta um passo no mundo contemporâneo. E o que resta para aqueles que continuam a reivindicar a legitimidade de uma existência humanizada? No livro "A Insustentável Leveza do Ser", Milan Kundera, através dos quatro personagens Tereza, Tomas, Sabina e Franz, descreve o peso que compõe a vida. Ele fala sobre o sofrimento que surge do amor, das problemáticas das crises políticas, dos imperativos que sufocam a existência, calcados na frase "tem que ser assim", e também – minha parte preferida – da tentativa de apagamento da humanidade que há em cada um de nós: a merda (tanto literal quanto figurativamente).
Errar, sofrer, chorar, lutar, desistir, romper, gritar, espernear, fraquejar, temer, perder, morrer. Humano, demasiadamente humano. Ser humano não é ser leve. Fingir que a leveza nos integra parece ser mais um peso que carregamos. O copo meio vazio pode ser metáfora de liberdade, afinal, não é justamente do útero de uma falta que nasce o desejo?
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko