Rio Grande do Sul

DITADURA NUNCA MAIS

'Impunidade até quando?' Encontro debate os 60 anos do golpe cívico-militar no país

Ex-presos políticos e especialistas ressaltam a importância de não esquecer da ditadura para que nunca mais aconteça

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Debate em "descomemoração" ao golpe militar de 64 foi realizado no SindiPolo, em Porto Alegre, nesta segunda-feira (8) - Foto: Carlos Messalla

"Lembrar para que nunca se esqueça, lembrar para que nunca mais aconteça, nem esquecimento, nem perdão: Justiça". Este foi o mote do debate em "descomemoração" ao golpe militar de 64, no SindiPolo, em Porto Alegre, nesta segunda-feira (8). Com o tema "impunidade até quando", o evento teve como debatedores a ex-presa política Ignez Maria Serpa Ramminger (Martinha), o historiador e ex-preso político Raul Carrion e a doutora em História Ananda Simões.

 :: Lutadores contra a ditadura são homenageados em exposição sobre o golpe na Câmara de Porto Alegre ::

Promovido pela Associação Cultural José Marti RS (ACJM-RS), Associação de Ex-Presos e Perseguidos Políticos RS (AEPPP-RS), Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), Fundação Maurício Grabois (FMG) e Cebrapaz, o debate contou com a apresentação cultural do músico Ciro Ferreira.

A doutora em história Ananda Simões iniciou sua fala destacando que a ditadura cívico-militar não é algo do passado e sim que está presente na história do país. “É uma ditadura impune até hoje. Não tem como dissociar de todos os eventos que aconteceram, tanto do golpe na presidenta em 2016, quanto em 8 de janeiro do ano passado.”

Ela destacou que no seu percurso acadêmico no mestrado o conceito terrorismo de Estado não era aceito para designar o período da ditadura civil-militar no Brasil, como era aceito na Argentina, no Chile ou no Uruguai. “Hoje já é aceito. O terrorismo de Estado foi tão forte contundente no Brasil justamente pelo silêncio que ele trouxe para a sociedade brasileira. O Brasil ficou conhecido no Conesul como um país de silêncio, ou seja, um país onde não se falava sobre os 21 anos da ditadura. E principalmente o país onde não houve uma continuidade em relação à geração que lutou na ditadura nos anos 60, 70, 80. Houve uma ruptura para as gerações seguintes, o terrorismo de Estado calou a sociedade e uma parcela da população brasileira.”

De acordo com Ananda, com a saída da ditadura e o período da democratização também houve um processo de despolitização. Com tempo, se percebeu o quão frágil estava a democracia, como exemplos estão o impeachment da presidente Dilma, a prisão de Lula e a ascensão de Bolsonaro. 

Ela reforçou que a ditadura cívico-militar de 64 não é passado somente a ser estudado nos livros de história. “Ela ainda é um marco constitutivo da nossa sociedade, isso não é temporal. Tanto a ditadura de 64 quanto o período da escravidão são os dois maiores marcos constitutivos da nossa estrutura social. Todas essas questões não resolvidas ainda afetam a sociedade brasileira”, analisou.

Também enfatizou que o Brasil é o único país que não puniu nenhum dos torturadores e o reconhecimento, por parte do Comissão Nacional da Verdade, sobre os 434 desaparecidos políticos. “Além desses mortos e desaparecidos políticos, também há vários outros povos, como por exemplo os indígenas, em que mais de 8 mil indígenas foram exterminados pela ditadura.”

Para que nunca mais aconteça

Entrevistada pelo Brasil de Fato RS, neste último final de semana, ex-presa política Ignez "Martinha" Serpa fez um breve relato de sua experiência durante a ditadura, quando tinha entre 15 e 16 anos. Ela serviu primeiramente como pombo-correio e posteriormente entrou na luta armada, na militância, com sua formação como paraquedista, uma das poucas mulheres na época. 

“Tem uma parte trancada que não estou conseguindo desovar que é justamente a da prisão. A tortura, fica marca, por mais que tu trabalhe, ela fica. O que me ajudou muito a superar as marcas da ditadura na psique foi justamente continuar lutando nas coisas que acredito”, revelou. Ela cita como exemplo a Reforma Sanitária, luta pela democratização do acesso à saúde no país.

:: ‘A tortura não sai de ti, fica contigo para o resto da vida’, conta ex-presa política :: 

De acordo com Martinha, toda a luta feita durante a ditadura, falando da questão da mulher, não era de gênero. “Naquele momento estávamos lutando pela liberdade geral de homens e mulheres. Éramos por todos que estávamos sob uma repressão e ditadura violenta, sem direitos básicos nenhum. Nossa geração foi a geração que começou a abrir uma série de portas para as mulheres hoje em dia. Se tu começa a lutar contra uma estrutura, contra um estado repressor, tu acaba tomando consciência também de lutar contra uma sociedade machista. É uma decorrência, um processo histórico.”

Ela também chamou atenção para o êxodo rural que ocorreu durante a ditadura, com concentração de terras e inchaço nas periferias, ausência de planejamento urbano, assim como repressão a lideranças de movimentos sociais e sindicais. “A tem ainda toda uma estrutura repressora mantida, a tortura não sumiu do mapa. Ela ainda existe dentro das cadeias, das prisões”, avaliou.

Na sequência o também historiador e ex-preso político Raul Carrion começou sua fala reforçando o que tinha sido dito pela Ananda, que a ditadura não é passado. “Os milicos estão rosnando aí, estão atrincheirados. O regime militar foi derrubado depois da derrota da resistência armada, das diretas. Foi necessário uma grande articulação, uma frente ampla para gente conseguir afastar os militares”, disse.

Ele também abordou a questão da anistia, que foi conquistada com limites. "Não foi como a gente queria, mas com a anistia nós avançamos a luta. Voltaram todos os anistiados, os que estavam presos, clandestinos, exilados. A luta não é exatamente como a gente quer, mas como a gente vai conseguindo fazer ela. Tanto a anistia como a derrubada da ditadura não foi como a gente gostaria, diferente da Argentina. Quem viveu a situação, sabe que a gente vai encontrando os caminhos. Por isso, a impunidade também segue.”

Conforme enfatizou Carrion, essa parte da história do Brasil tem que ser discutida para se entender o passado, não somente para as novas gerações, mas também para as antigas. “Para entender o presente, entender o 8 de janeiro, entender os conflitos que nós temos que enfrentar, os militares que nós temos que continuar enfrentando. E para no futuro, preservar a democracia.”

Também relatou os impactos durante o período na ditadura. “As mortes não foram em vão, essas torturas não foram em vão, essas prisões não foram em vão. A luta do povo é que derrotou essa ditadura. Claro que é importante denunciar os crimes da ditadura, mas é importante resgatar a luta do povo brasileiro e da sua juventude. Nós vencemos, nós derrotamos eles, a juventude brasileira, o povo brasileiro, com 21 anos de luta que não parou um segundo, que deu um sacrifício enorme, que derrotou os generais armados até os dentes.”

O evento foi transmitido ao vivo. Assista:


Edição: Marcelo Ferreira