A escandalosa troca de Partido em curso, facilitada pela “janela partidária” de março em ano eleitoral, é uma das razões da necessidade de novas regras eleitorais. O jornal ZH de 27/03/24 (p. 6) noticia que uma vereadora de Porto Alegre justificou a deserção aos ex-correligionários já pensando em 2026 e que “teria mais chances em um partido com mais dinheiro e menos candidatos fortes”. Ou seja, por grana e oportunismo eleitoral.
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E o partido que lhe garantiu legenda e eleição? E os eleitores que votaram em um projeto, em um programa partidário e não foram consultados sobre o ato? A essa incoerência e fraude da “soberania popular” do voto sobram o desencanto e a rejeição da política pela cidadania.
O casuísmo da “janela” é mais recente, mas os problemas do sistema eleitoral vem de longe. A maioria deles vem do Congresso Constituinte de 1988. A legislação eleitoral herdada da Ditadura (1964/1985) foi mantida quase na íntegra. Afinal, eram deputados e senadores votando na continuidade dos seus mandatos e não “constituintes exclusivos” que voltariam à condição cidadã e teriam que se submeter às novas regras caso quisessem disputar cargos eletivos.
Em 1982, voltamos ao pluripartidarismo, mas a distorção de piso e teto na proporcionalidade da representação da cidadania dos Estados na Câmara Federal permaneceu. O senador “biônico” da Ditadura transformou-se em terceiro mandato estadual no Senado e este passou a ter, praticamente, as mesmas competências e iniciativas da Câmara Federal apesar de ser um órgão de representação federativa. O voto continuou nominal fragilizando os partidos e favorecendo o poder econômico no conhecimento público dos candidatos. Nenhuma política para superar a brutal desigualdade de gênero na representação da cidadania.
O voto nominal numa sociedade de classes com profundas desigualdades sociais exacerba ainda mais as condições desiguais da representação política e estimula a fragilização partidária, favorecendo o individualismo e o personalismo na política.
Daí decorrem outras distorções como a acintosa burocratização dos parlamentos, em especial do Congresso Nacional, com manutenção de privilégios na saúde, na previdência e assessorias pessoais injustificáveis. São fatores que pesam também no questionamento da representação política no país, mas voltemos ao sistema eleitoral.
A legislação até recentemente permitia um sistema de coligações incoerente em relação às denominações e programas partidários (indicativas de seus propósitos e objetivos). Essas coligações também iludiam os eleitores pois o caráter partidário, programático do voto ajudava a eleger alguém com posicionamento oposto.
A aprovação em 2017, diante da absurda pulverização partidária com mais de 35 partidos registrados, de Emenda Constitucional proibindo as coligações proporcionais está em vigência e significou um avanço parcial junto com a cláusula de desempenho mínimo aos partidos para terem representação parlamentar e acesso aos Fundos Partidário e Eleitoral.
As Federações Partidárias aprovadas e permitidas a partir de 2021 também são positivas, pois se constituem como espécie de frente partidária com dois ou mais partidos, mas exigem caráter nacional, programa comum, soma dos votos proporcionais, mínimo de duração de 4 anos e liderança comum das bancadas eleitas nos legislativos. São medidas positivas mas limitadas para uma melhoria do sistema eleitoral brasileiro.
Uma mudança necessária, urgente, para qualificar a democracia brasileira é o fim do voto nominal. Este não é só a expressão do individualismo na política. É o espaço aberto para a disputa pessoal, para ser o mais votado, mesmo arranhando legislações e princípios éticos. É o espaço aberto para a compra de votos e para a corrupção eleitoral. Seja com recurso privado próprio ou de outros, seja na disputa do Fundo Eleitoral feito por direções partidárias, na sua maioria, sem legitimidade, sem processos eletivos. A maioria dos partidos hoje possui Direções provisórias que controlam as instâncias estaduais e municipais pelo poder da nomeação e não da participação dos filiados em disputas internas democráticas. Daí a disputa insaciável por um Fundo Eleitoral crescente e nunca suficiente.
Se somarmos a isso a febre clientelística que tomou conta dos legislativos, as emendas parlamentares impositivas ou não, num país que continua presidencialista e aos Executivos compete elaborar e executar os Orçamentos, o caos e a ingovernabilidade estão instalados.
Não bastam os Fundos Partidário e Eleitoral, a guerra pelo voto requer cada vez mais recursos públicos e privados, mais clientelismo e, é evidente, mais negócios para mais apoiadores independente de identidade programática e/ou partidária.
Esse sistema eleitoral é destruidor dos Partidos, de todos, mais cedo ou mais tarde. Além disso, Fundos bilionários e emendas parlamentares impositivas impedem os governos de planejar, de racionalizar gastos, enfim, de governar.
O fim do voto nominal e a adoção do voto em lista partidária previamente ordenada fortalece os partidos, obriga-os à filiação, à democracia interna, a identidade programática e a indicação de seus filiados mais capazes para exercer mandatos executivos e legislativos. No PT implica em pluralismo real, sem exclusões, tema cada vez mais crítico pois está sendo posto questão pela maioria.
O sistema de lista partidária aumenta a fidelidade programática, dificulta o aventureiro, o charlatão ou candidatos cuja expressão pública ocorre por fatores alheios a um programa, a uma proposta partidária. O fortalecimento e a identificação programática dos Partidos Políticos é uma das bases para a solidez democrática de um país.
Em todas as democracias sólidas, estáveis, o sistema eleitoral baseia-se nas listas partidárias pré-ordenadas, inclusive, nos sistemas distritais, onde o partido é o responsável pela indicação da candidatura que o representa. Não há dúvida, no entanto de que o sistema proporcional é muito mais democrático, pela possibilidade de incorporar minorias, novas tendências políticas e exigir dos partidos um programa abrangente que vá além da tendência paroquial do sistema distrital.
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O voto em lista pré-ordenada permite, também, aos partidos corrigir distorções na representação política incorporando a paridade de gênero nas listas eleitorais bem como – de acordo com o seu programa – contemplar representações sociais e raciais. Na vizinha Argentina, as Províncias e suas municipalidades já incorporam em seus sistemas eleitorais a paridade de gênero nas listas assim como é comum na maioria dos países europeus.
No caso brasileiro, com a atual composição do Congresso pode parecer difícil alcançar esses avanços democráticos. Inclusive, na última minirreforma, a Câmara Federal chegou a aprovar o absurdo do retorno das coligações proporcionais. Felizmente, o projeto foi arquivado no Senado mas é um indicativo da tendência atual na Câmara Federal.
Urge, no entanto, abrir este debate na sociedade. Unir as Federações do campo democrático num projeto comum que incorpore outros partidos, as universidades, os movimentos sociais e sindicais também interessados na consolidação da democracia no país. É preciso envolver especialistas, as redes sociais, a mídia alternativa na difusão dessas ideias e de seu reconhecimento como um avanço social para o país.
Não é crível que cidadãos e cidadãs defensores dos princípios democráticos achem normal, por exemplo, que o piso e o teto na representação dos estados na Câmara Federal mantenha a distorção de que São Paulo tenha o limite de 70 deputados federais e os dez menores estados com a metade da população elejam, somados, 80 deputados. Neste caso, a herança da Ditadura de 64 nos remete ao século XVIII, pré-Revolução Francesa.
Por fim, o maior desafio hoje é abrir o debate de tema tão crucial para a democracia brasileira. A ausência desse tema em nosso programa partidário, no governo Lula, parece sinalizar que vivemos em um país onde não aconteceu o 8 de janeiro, as Forças Armadas são fiéis à Constituição e o governo eleito tem toda a garantia para levar a cabo seu programa e governabilidade.
* Raul Pont é Professor, ex-Prefeito de Porto Alegre e membro do Diretório Nacional do PT
Edição: Katia Marko