Precisamos de uma nova era, com suspensão drástica dos atuais modos dominantes de produção e consumo
Há alguns séculos aquilo que entre nós se entendia como ciência, apogeu do espírito humano, parecia se concentrar, evoluir e irradiar a partir do mundo antigo. Mais objetivamente, do Mundo Europeu. Naqueles tempos, e particularmente nos países dominantes do capitalismo emergente, muito pouco se sabia sobre a vida nas Américas. Assim, quando passamos a existir para eles, ganhou força a expectativa de que neste território misterioso, onde os povos locais seriam irrelevantes, estariam guardados os elementos necessários à recuperação da decadência do velho mundo.
Prenhe de riquezas sem dono, a Terra Nova surgia como espaço a ser apropriado pela correção da animalidade antropofágica e outros demônios tipicamente sul-americanos. Justificavam-se, pela ciência e pela religião dos invasores, tanto os genocídios pelas armas como o apagamento cultural gradativo de todos os conhecimentos e valores aqui milenarmente enraizados.
E assim evoluiu e assim continua avançando entre nós o que poderia haver de pior na miséria humana.
Porém, com o tempo, se tornou difícil negar o fato de que entre os selvagens da Terra Nova havia método, sabedoria e religiosidade, além de virtudes humanas de caráter superior. Talvez um pouco por isso, na dúvida, na vergonha, mas principalmente por ganância e oportunismo dos conquistadores, desde sempre os valores positivos dos gentios vêm sendo sistematicamente esmaecidos, distorcidos, ocultados, destruídos.
E, isso com certa razão. Afinal, não convinha divulgar o fato de que enquanto os civilizados europeus destruíam as bases vitais de seu continente, aqui os povos bárbaros, com seus costumes, estariam garantindo o equilíbrio dinâmico de suas organizações e ecossistemas. Não convinha reconhecer que na Terra Nova, há tantos milênios quanto no velho mundo, existiam pessoas “com alma” porque com capacidade de imaginar e sonhar, prometer e cumprir, amar e perdoar.
Sequência de pinturas rupestres é vista em caverna do Piauí. A representação de arte rupestre mais antiga da Serra da capivara tem 29 mil anos, "isto é, quando começava na Europa e na África, começava aqui também. A pedra polida, com lascas, e a cerâmica".
Parece ter sido desta forma que a brutalidade do passado impediu reflexões que poderiam ter ajudado (pela aproximação de saberes civilizacionais) no estabelecimento de caminhos para recomposição da civilidade terrena.
Aparentemente, sob o manto de guerras similares às praticadas na Europa, os habitantes da Terra Nova acreditavam estar honrando os inimigos, ao devorar seus corpos. Mas não os matavam pela fome. E eles também sobrevalorizavam as crianças e os idosos, abrigando-os sob cuidados de todos. E ainda tratavam a coletividade como um ente, dotado de direitos, e concebiam a natureza, o Todo, como uma manifestação completa do mundo mágico que sustentava a vida.
Bem diferente, portanto, do que se observa hoje, naqueles mesmos territórios, e sob a pressão dos nossos valores civilizados.
Haveria, naquela concepção de conexões entre vida e morte, algo que deveria ser por todos respeitado e protegido, que não poderia ser reduzido e apropriado por qualquer de suas partes. Aquele tipo de gente, com aqueles costumes, para os conquistadores carregava a marca, a essência do “outro”. E como nos foi ensinado, a eles não é crime expropriar, roubar, matar... Sejam indígenas, negros, palestinos, exilados da própria terra ou simplesmente pobres, os outros não são mais do que candidatos a vítimas. E assim, a Terra Nova foi destruída.
O fato, o tema a que pretendo chegar, parte daquela realidade em transformação.
Aqueles homens da ciência, que com seus braços armados, destruíram as verdades da Terra Nova, não apenas atrofiaram e substituíram o que aqui havia. Eles também impuseram a hipocrisia que sustenta as desigualdades que comprometem a vida no planeta como um todo.
Como resultado percebe-se que o sucesso daqueles conquistadores, ao estender os domínios do medo e semear a suspeita de que o canibalismo, pela fome, tende a se colocar como ameaça real, poderá alcançar a milhões de seus descendentes.
Em verdade, parece ser graças a isso que hoje vivemos uma nova era das grandes incertezas. Neste período, os parâmetros mais relevantes para a sustentação da vida, de todas as vidas, perderam sua condição de estabilidade. Deixaram de ser parâmetros. As estações do ano, o ciclo das águas, o relógio metabólico dos indivíduos, das espécies e dos biomas, se tornaram variáveis destrambelhadas que se expressam em termos físicos (o aquecimento global), biológicos (os espectros da fome e da peste) e psicossociais (o avanço do fascismo, das guerras e da busca por heróis messiânicos).
Por isso, não havendo mais segurança para a validade da sabedoria popular historicamente aprimorada, e com a ruína dos modelos de análise científica, o negacionismo tende a se impor e já ameaça pavimentar caminhos para soluções mágicas, cada vez mais violentas e perigosamente associadas às novas e emergentes religiões de mercado.
Ou seja, com a ruptura de conexões que acreditávamos estáveis, entre semeadura e colheita, clima e estações do ano, direitos e deveres, a sobrevivência se faz ameaçada e as nações, como as famílias estendidas e a solidariedade humana tendem a se desvanecer. Ao menos é isso que sugere o último relatório do IPCC (The State of the Global Climate 2023), destrinchado por Luiz Marques em O relatório da Organização Meteorológica Mundial - Um rápido comentário.
Basicamente, a temperatura média do planeta, que se altera de forma exponencial em resposta à expansão do modelo de desenvolvimento que anulou os valores de sociabilidade presentes em todas as Terras Novas, já superou, em 2023, todos os limites explicáveis pela ciência atual. Por isso, os estudiosos afirmam que esta é a nova era da instabilidade. Nela, o planeta inteiro se defronta (ainda que sem consciência disso) com mesmo o drama dos habitantes da Terra Nova, quando acossados pela ignorância, voracidade e violência inimaginável, incompreensível, dos conquistadores.
Chegamos ao ponto de não retorno quando as medidas de temperatura, proxy de todos os resultados deste processo de destruição das bases da vida superou a capacidade interpretativa dos sistemas analíticos da ciência?
Parece que sim. Considerando os indicadores adotados pela Organização Meteorológica Mundial (OMMA), se não houver inflexão até agosto deste ano, estaremos diante de um novo padrão de realidade. Algo desconhecido, com implicações dramáticas sobre as possibilidades de produção e consumo de alimentos. Anunciam-se alterações no sistema de chuvas, com secas e inundações destruidoras das colheitas, com migrações em massa, com guerras e pandemias de fome e ressurgimento de doenças supostamente erradicadas. O fim do mundo que conhecemos, pela desestabilização dos padrões que o sustentam.
Isto implica literalmente, no fim do mundo? Não. Mas seguramente indica o fim das possibilidades do capitalismo e das injustiças e degradações de recursos escassos que ele impõe. Significa a necessidade de uma nova era, com suspensão drástica dos atuais modos dominantes de produção e consumo. Com desautorização das recomendações científicas que o sustentam e com a revalorização de leituras que colocam a humanidade como parte da natureza, abrindo caminho para sua revitalização, com estímulo de redes e circuitos curtos, amigáveis à natureza, intensivos em mão de obra e poupadores de energias não renováveis.
Uma revolução de base agroecológica, que já está em andamento e da qual dependeremos, motivo pelo qual precisamos todos, com urgência, somar forças ao enfrentamento dos interesses que a negam.
A música Kaingang, do Carlos Hanh.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko