“Como o grande Kant [Immanuel Kant] falava, 300 anos atrás, a única realidade tangível ao ser humano é aquela que a mente humana cria para ele. Porque nós nunca vamos saber o que realmente existe aqui fora. Nós só vamos entender o que existe aqui fora sob o ponto de vista da biologia do nosso cérebro. Porque é o nosso cérebro que capta tudo que está aqui fora e transforma o que a gente chama de realidade.”
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Para o médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, o cérebro é um criador ativo do que existe aqui fora, e que também planeja o futuro, seja ele o futuro mais abstrato possível. A afirmação foi feita durante a palestra sobre a interface cérebro-máquina no Congresso do Bicentenário de São Leopoldo, cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, na manhã desta terça-feira (26).
Pioneiro no estudo sobre a interação cérebro-máquina e em pesquisas que desenvolvem esta tecnologia, além de sua aplicação no restabelecimento de movimentos em pessoas acometidas por paralisias e doença de Parkinson, ele falou desta experiência e também do Campus do Cérebro, em Macaíba, Rio Grande do Norte, criado por ele no final dos anos 1990. Ele também fundou e dirige o Projeto Andar de Novo (Walk Again Project).
Durante mais de uma hora, o neurocientista contou a história de como uma linha de pesquisa científica, criada com o intuito original de entender quais são os mecanismos que fazem a mente humana ser o que ela é, saiu de dentro de quatro paredes de um laboratório e se tornou uma das áreas mais relevantes na Ciência. “O estudo da Interface cérebro-máquina, uma conexão direta entre o cérebro de animais ou seres humanos com máquinas, sejam elas mecânicas, eletrônicas ou virtuais.”
O verdadeiro criador de tudo
Em sua exposição, o médico resgatou uma breve história das interfaces de cérebro humano. Segundo a descrição que ele tem como o cérebro cria a impressão de realidade, Nicolelis explica que tudo começa com o que nos cerca, o universo que nos cerca. “O que o universo oferece para a mente humana é informação e potencial. Não existe nenhuma descrição de significado, nenhuma definição categórica, nenhum dogma que o universo oferece à mente humana."
Então, continua, "o cérebro humano, desde a nossa vida intrauterina, começa a criar um modelo interno de identidade. E ele vai continuamente adaptando esse modelo com as estatísticas do mundo, com as circunstâncias das nossas experiências diárias. E como, à medida que ele faz isso, ao longo da nossa história enquanto espécie, o cérebro humano criou abstrações mentais que se transformaram literalmente na infraestrutura, na base mental da civilização humana”.
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Ao abordar a inteligência natural (orgânica) e a artificial, Nicolelis afirmou que a inteligência dita artificial não é nem inteligente e nem artificial. “Ela não é inteligente porque a inteligência é uma propriedade que emerge da matéria orgânica, basicamente dos organismos, quando eles interagem com o ambiente, com outros organismos, na tentativa de maximizar a sua sobrevivência. Isso é inteligência. Nenhuma máquina faz isso. E jamais fará. Pelo menos as máquinas digitais que nós conhecemos. E ela não é artificial, porque ela é feita por seres humanos. Na realidade, a inteligência artificial é uma coleção de métodos estatísticos muito poderosos, muito interessantes, que eu uso há 30 anos, a maioria deles, ou alguns deles. Mas isso está muito longe, mas muito, muito longe de se equiparar.”
O segundo ponto, complementou o médico, é que não se consegue extrair inteligência. De acordo com ele não é possível sugar de um cérebro as suas memórias, as suas emoções e não se consegue por dentro do cérebro, como se faz com o computador, tirar o conhecimento. "Você consegue oferecer oportunidade para o cérebro. Gera informação e gera conhecimento. Nenhuma máquina gera conhecimento. Essa é uma propriedade nossa. Isso é muito importante para a gente lembrar.”
Nova interface cérebro-máquina
Ao abordar a experiência entre a interação cérebro-máquina e a aplicação dela no restabelecimento de movimentos em pessoas acometidas por paralisias e doença de Parkinson, o neurocientista pontuou que quando se sofre uma lesão medular e se fica paralisado, se passa a não sentir o corpo abaixo da lesão.
“Instantaneamente o cérebro começa a esquecer que aquela parte abaixo da lesão faz parte de você. Ou seja, você perde a noção de que você tem o resto do corpo. Para fazer as pessoas andarem de novo, nós descobrimos que seria essencial retreinar o cérebro a acreditar que ele tinha um corpo íntegro, um corpo contínuo, uma vez que a tempestade elétrica, a brainstorm que eles geram, continuam gerando para a vida toda. Pacientes paraplégicos sonham que estão andando, jogando futebol, nadando, porque o cérebro continua a produzir os programas. Tem problemas, modificações, atrofia em certas regiões, mas o cérebro gera o programa, contudo ele não consegue chegar nos músculos, porque o canal de transmissão foi rompido.”
Conforme reforçou Nicolelis, existe um cérebro, e é preciso que ele funcione. “Isso não é normalmente comum na espécie humana, mas tem que estar funcionando. E o que nós descobrimos é que seria possível registrar a atividade elétrica dos neurônios, centenas deles em tempo real, mandar esses sinais para computadores que rodam modelos matemáticos que nós desenvolvemos para ler essa tempestade elétrica cerebral.”
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A descoberta foi feita entre o final de 1990 e começo de 2000, quando foi possível descobrir, em 1998, que seria capaz de ler, processar, e mandar sinais para artefatos robóticos, como uma mão ou uma perna robótica, e que eles passariam a ser controlados diretamente pela mente, ou dos animais ou dos seres humanos que estavam nessa conexão. Uma touca é colocada no paciente, e através de um eso-esqueleto se desenvolve os movimentos que são acionados pelo cérebro.
“Quando a interface do ser humano máquina está funcionando plenamente, o indivíduo que está conectado a ela não precisa mexer um outro ponto. Ele só precisa imaginar que movimento que ele quer realizar. Na vasta maioria dos casos, hoje em dia, nós conseguimos ler essa intenção voluntária e gerar um movimento, um artefato robótico, eletrônico ou virtual que nem precisa estar do lado do paciente. O cérebro, verdadeiro criador de tudo, recriou o modelo do corpo e fez com que essas pessoas experimentassem que elas tinham recuperado a sensação de ter um corpo íntegro."
Essa nova interface através de meios eletrônicos ou virtuais, afirmou o médico, é o que se pretende espalhar pelo planeta. “É uma interface completamente não invasiva, genérica, que não é só mais para pacientes com lesão medular, mas vai servir para pacientes com doença de Parkinson, com epilepsia crônica, com derrame, com uma variedade de doenças. Um estudo, uma semana atrás, mostrou que o mundo tem 3,5 bilhões de pessoas com algum distúrbio do sistema nervoso central. Isso é 43% da humanidade. A pandemia de covid só fez isso piorar”, expôs.
Campus do Cérebro
Ainda durante o encontro o médico fez um relato da criação do primeiro Campus do Cérebro no mundo, desenvolvido e criado por ele, na cidade de Macaíba, na periferia de Natal (RN), com 60 mil habitantes. “Esse é o primeiro campus do planeta onde todas as atividades foram planejadas, centradas na mente humana, há uma escola de educação científica, clínica.”
Conforme explicou Nicolelis, o trabalho é feito ainda no pré-natal das mães até o pós-doutorado. De acordo com ele a clínica atende 60 mil mulheres grávidas de alto risco, por ano, gratuitamente. “Nossa noção é que a educação, como somos neurocientistas, e que para você ter um cérebro que atinja seu potencial humano de 100%, você tem que começar no pré-natal das mães. Porque se o pré-natal não for perfeito, as crianças não nascem com toda a atenção necessária, não tem como recuperar funções motoras, cognitivas, sensoriais. Nós tivemos, durante 10 anos, a única escola do planeta que começava no ultrassom do primeiro pré-natal da mãe e ia até o pós-doutorado.”
Em 10 anos, apontou o médico, foram atendidas mais de 12 mil crianças, que vinham ao campus no turno oposto ao ensino escolar. “Não havia aula teórica. Toda a educação científica era feita em laboratórios. E hoje serviu de modelo. Duas semanas atrás, nós anunciamos que a cidade de Milão vai copiar esse modelo e se transformar no centro neurotecnológico da Europa, made in Macaíba. Estamos criando hubs pelo mundo, para criar uma rede mundial. A inteligência orgânica é a única que existe sem sombra de dúvida, ou até uma prova em contrário nesse nosso querido canto da Via Láctea”, concluiu.
Edição: Katia Marko