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TECNOLOGIA

'Para não se correr riscos com IA é preciso acabar com o capitalismo', defende Ricardo Antunes

O professor da Unicamp participou do evento 'O uso de IA e seus riscos para a Justiça' em Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre |
O professor Ricardo Antunes critica o uso de IA pela Justiça - Foto: Aquivo BDF

Ao participar do evento “O uso de IA e seus riscos para a Justiça”, o professor doutor Ricardo Antunes afirmou que para se utilizar a Inteligência Artificial (IA) sem correr riscos de desumanização é necessário acabar com o sistema capitalista. Para ele, a ferramenta foi criada pelo capitalismo para aumentar seus lucros e diminuir o trabalho humano.

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O evento foi promovido pela Associação dos Oficiais de Justiça (Abojeris) na sexta-feira (22) e no sábado (23), no Hotel Intercity Canoas, com a presença de especialistas em tecnologia da informação, direito, ciências sociais, entre outros. Logo após sua palestra, o professor doutor Ricardo Antunes, que é o titular da disciplina de Sociologia do Trabalho na Unicamp, deu uma entrevista sobre o tema para o Brasil de Fato RS.

 Confira a entrevista:

Brasil de Fato RS - Qual é sua opinião sobre o impacto que a Inteligência Artificial tem hoje no Mundo do Trabalho?

Ricardo Antunes - O impacto é profundo. Vamos começar com um ponto de partida. A tecnologia é um invento humano. A primeira mulher, o primeiro homem, a primeira família humana procuraram desenvolver instrumentos de trabalho para sobreviver. Então, se ela tinha uma pedra lascada ela polia a pedra e fazia um instrumento para poder coletar, pescar, caçar, etc. Ou seja, a tecnologia é uma criação humana. Mas o capitalismo adaptou a tecnologia com o objetivo precípuo de ser um instrumental gerador de mais valia e de acumulação do capital. A tecnologia passou a ter como prioridade um, valorizar o capital.

Ponto três, então a inteligência artificial... Eu sei que a IA pode ser muito boa para a indústria hospitalar e para a saúde. Se pode fazer cirurgias a distância, por exemplo, e curar pessoas adoecidas, utilizando a IA. O problema, e aí entramos no ponto seguinte, é que nós estamos em uma lógica em que tudo o que é criado é para diminuir o trabalho vivo e ampliar o trabalho morto.

A IA hoje tem o objetivo de eliminar trabalho vivo criando massas e mais massas de desempregados e desempregadas que não vão ter como sobreviver. Esta é a tragédia essencial

Isto é: diminuir o trabalho assalariado humano e ampliar o trabalho maquínico, industrial, digital e agora da IA. Com que objetivo? O enriquecimento das grandes plataformas, das grandes corporações. O sonho do Elon Musk não é enriquecer a humanidade, é enriquecer o seu complexo empresarial-corporativo que já é imenso. O objetivo do dono da Amazon é dominar o mundo através destas várias experimentações que a Amazon vem fazendo. Começou vendendo livros e hoje, como eles dizem, “de A a Z tudo se faz e tudo se entrega na Amazon”. Dominam o mercado mundial.

E aí chego no último ponto, a IA, hoje, está em mãos de quem quer acumular. Se pudesse brincar com figuras eu diria: a inteligência artificial está hoje comandada, realizada por um amplo leque de experiências. E tem desde aqueles que querem dar a ela uma dimensão de melhoria da vida humana, até aqueles que podem fazer com que a IA ajude a destruir a humanidade. Já é possível criar exércitos baseados na IA. E você só cria exércitos com o objetivo de eliminar alguém, de guerrear com alguém ou de extinguir alguém.

Ponto final, a IA hoje tem o objetivo de eliminar trabalho vivo criando massas e mais massas de desempregados e desempregadas que não vão ter como sobreviver. Esta é a tragédia essencial.

BdF RS - Usar a IA no Poder Judiciário pode levar a uma desumanização da Justiça?

Antunes - É claro! Veja bem, vamos para o limite. Se eu instaurar um sistema Judiciário brasileiro ou mundial fazendo com que ele todo funcione por IA uma ação pode ser resolvida em poucos minutos. Ela entra no sistema de IA, roda todas as informações que você tem e, em alguns minutos você tem a resposta: “Esta ação deve ser condenada por isto, isto, isto e isto, porque o que aconteceu em milhares de processos deste tipo o resultado foi esse”.

O que acontece, como é uma justiça que não tem o juiz ou a juíza, que não tem o trabalhador do Judiciário, uma justiça que não tem o direito de defesa ao vivo do que está sendo condenado, uma justiça que não tem o direito da acusação para externar os motivos da acusação, uma justiça que não tenha a dimensão intersubjetiva, que não tenha a relação de interlocução, é um vilipendio.

O robô não tem a autenticidade do cérebro humano capaz de criar num saldo que não é repetição, mas é criação. A IA é incapaz de criar, ela repete

E assim como a Justiça, nós poderemos ter escolas com professores que serão substituídos pelo ChatGPT4. Uma máquina robótica que vai repetir o que muitos falaram sobre tal tema, sem ter a lucidez, sem ter a capacidade de síntese de uma pessoa humana.

Lembro que li uma vez um artigo Inglês que dizia que se propôs que robôs, com base na inteligência artificial, ouvissem Mozart, Beethoven e outros grandes autores de música clássica. Eles ouviram. Pediram então que estes robôs criassem uma música clássica, e eles não conseguiram criar uma música clássica. Porque o Beethoven tem um tipo de música, o Mozart tem outro, e assim sucessivamente, o robô mistura tudo, ele não tem aquilo que é singular à existência humana. O robô não tem a autenticidade do cérebro humano capaz de criar num saldo que não é repetição, mas é criação. A IA é incapaz de criar, ela repete.

BdF RS - Em algumas profissões como a de jornalista, de publicitário, o pessoal está sentindo muito medo desta situação.

Antunes - É claro. A IA, o que tem de positivo é o fato de ser repositório da Inteligência humana. Só que quando você liga uma máquina e desembesta esta máquina, ela passa a ser incontrolável. Eu citei aqui na palestra o exemplo daquele livro magistral da Mary Shelley, O Frankenstein. A criação de uma figura humana num laboratório quando isso era impossível de ser feito, deu uma figura humanamente integra, mas que era horripilante, feia na forma e que todos a recusavam e a repudiavam pela feiura dela. É um romance, magistral que mostra que o capitalismo sonha em criar cada vez mais coisas que não têm condições de controlar.

Por exemplo, no caso dos redatores houve uma greve que durou em média seis meses nos Estados Unidos, de artistas e roteiristas de Hollywood, porque você elimina uma profissão, como pode eliminar a profissão de jornalista. É criminoso, por isso que eu chamei a atenção, eu não sou contra tecnologia como princípio. Eu comecei dizendo que a tecnologia nasce com a humanidade. Mas temos que ser contra a tecnologia que hoje é centralmente voltada para o enriquecimento do capital quando, o capital atingiu a sua fase mais destrutiva.

A sociedade capitalista é da destruição. Ou criamos uma outra sociedade com base num modo de vida coletivo, social, solidário, ou nós vamos caminhar para um mundo no qual as guerras vão acabar com a humanidade

Destrutiva em relação a natureza, ao trabalho, ao gênero, as raças, as etnias e destrutiva em relação a humanidade como nós estamos vendo em dois conflitos hediondos, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia e o genocídio brutal do governo neofascista de Israel, eliminando a população palestina de Gaza, inclusive a sua maioria mulheres e crianças de forma brutal inimaginável.

E a IA sendo criada por estes mesmos grupos destrutivos que condenam o mundo não é possível esperar coisa boa dela, ainda que, em tese, ela possa trazer benefícios para os hospitais. Mas isso implica numa mudança profunda da sociedade. A sociedade capitalista é da destruição. Ou criamos uma outra sociedade com base num modo de vida coletivo, social, solidário, ou nós vamos caminhar para um mundo no qual as guerras vão acabar com a humanidade.

BdF RS - O senhor está dizendo que a IA pode ser boa em um outro modo de produção?

Antunes - Exatamente. Por exemplo, um algoritmo que me ajude a organizar um trabalho público num hospital é uma coisa. Já um algoritmo controlado por uma empresa que só quer enriquecer à custa da morte do trabalhador é outra coisa. Se formos contra a tecnologia seremos contra a pedra polida, que foi um invento da humanidade no passado. Quando se poliu a pedra se fez com que a pedra servisse para mais coisas.

O que nós temos que impedir é o domínio da tecnologia pelo capital. Para isso é preciso acabar com o capitalismo

O problema é que a humanidade criou uma tecnologia que foi usurpada pelo capitalismo. E hoje ela é predominantemente controlada pelo capital. Mas atenção, ainda há muitos centros de pesquisa que publicam no mundo, as universidades públicas. Nós temos cientistas ligados a estas instituições que usam a tecnologia para a humanidade. O que nós temos que impedir é o domínio da tecnologia pelo capital. Para isso é preciso acabar com o capitalismo.

BdF RS - Como se pode fazer isto?

Antunes - Organização, luta, consciência, debates, vida solidária e a invenção de novos projetos. Tentar no nosso dia a dia termos uma ótica antiprivatista, sem nunca perder de vista que a humanidade existe muito antes do capitalismo. O capitalismo é passageiro, a humanidade pode ser eterna.

O problema é que o capitalismo quer passar para a humanidade a ideia de que ele é eterno. Mas o capitalismo é o sistema mais destrutivo que a história humana criou e que haverá de sepultá-lo

O problema é que o capitalismo quer passar para a humanidade a ideia de que ele é eterno. Mas o capitalismo é o sistema mais destrutivo que a história humana criou e que haverá de sepultá-lo. Para isto temos que lutar em todos os espaços: na vida quotidiana, no espaço coletivo, na escola, na fábrica, no campo, na agricultura, na empresa, nos jornais, é assim que vamos fazer. Foi assim que as grandes revoluções ocorreram no mundo.


Edição: Katia Marko