Famílias com crianças, jovens, idosos, ex-presos políticos, representantes de partidos, entidades sindicais e movimentos sociais ocuparam o Largo da Prefeitura de Porto Alegre para “descomemorar” o aniversário de 60 anos do golpe de 1964, defender a democracia e lembrar os ataques à Palestina”.
Organizado pela Frente Brasil Popular e a Frente Povo Sem Medo, juntamente com dezenas de outras entidades, o ato reuniu cerca de mil pessoas no sábado à tarde (23) e contou com intervenções artísticas.
“Nossa pauta central é a defesa da democracia e o fim do genocídio contra o povo palestino. Estamos fazendo neste momento para lembrar que ditadura nunca mais. São 60 anos de um golpe e agora, recentemente, um ano de nova tentativa de golpe no Brasil. Nós não permitiremos. A nossa democracia ainda é jovem, mas nós queremos fortalecer para se tornar com certeza uma democracia madura em que os direitos sociais sejam garantidos plenamente ao povo brasileiro”, afirma Vitalina Gonçalves, representante da Frente Brasil Popular.
Também representante da Frente, Eliane Valansuelo ressalta que os 60 anos também servem para lembrar dos mais de 400 mortos/desaparecidos pela ditadura militar. “A história nos demonstrou o que a ditadura fez. E a tentativa de golpe, no dia 8 de janeiro do ano passado, a gente não quer deixar passar em branco, assim como ainda não queremos que deixe a memória daquelas pessoas desaparecidas na ditadura e também os que morreram na ditadura”, pontua Eliane.
“Nós ainda choramos os mortos da ditadura militar, desse regime nefasto e cruel. Então nós nos levantamos a todo momento, e estaremos nas ruas sempre, cada vez que sentirmos que a democracia está ameaçada”, ressaltam as organizadoras.
Para o representante da Frente Povo Sem Medo Luciano Schafer os “fascistas brasileiros que estão contribuindo para a chacina em Gaza e que toda a semana chacinam o povo brasileiro nas periferias e nas favelas, é a mesma parcela fascista que tenta dar golpe sempre nesse país”. Conforme enfatiza o militante, os golpes foram vencidos pela mobilização do povo, dos trabalhadores, das entidades estudantis, dos sindicatos. “E é assim que a gente vai colocar todos esses fascistas na cadeia, com a mobilização do povo.”
Durante o ato também foi lembrado das mortes da militante Sarah Domingues, em Porto Alegre e do cacique Merong, assassinado em Brumadinho.
Para que nunca se esqueça, para que nunca mais aconteça
“Esse ato de hoje, que é um ato nacional para descomemorar os 60 anos da ditadura, também condena os golpistas que em janeiro tentaram derrubar a democracia do nosso país e defende o povo palestino que está sendo massacrado, dizimado por Israel”, destaca o ex-preso político e exilado, Raul Carrion (PCdoB).
Torturado no Palácio da Polícia, diz que o local deveria levar o nome de Palácio de Torturas, pois, segundo ele, depois da Operação Bandeirantes, esse foi o centro de torturas clandestino mais terrível que o Brasil teve. “Mas resistimos, continuamos a luta, derrubamos essa cambada e estamos hoje com o governo popular, com seus limites, mas avançando. E nós temos que empurrar ele pra frente."
Carrion faz um alerta. “Se nós não dissermos em alto e bom som que estamos defendendo a democracia, que ditadura nunca mais, esta gente que está se organizando para tirar os direitos do povo e para tirar as nossas liberdades democráticas voltará. A condição da democracia é a mobilização permanente do povo, das organizações sociais. E vamos à luta!”
Ex-prefeito de Porto Alegre e também ex-preso político Raul Pont ressalta que é preciso manter viva essa memória. “É uma luta consciente por quem passou, viveu essas experiências e sabe muito bem o que é uma ditadura.”
Ele comenta que está prestes a ser lançada a revista Teoria e Debate da Fundação Perseu Abramo, um número especial sobre a ditadura, onde escreveu um artigo sobre “O Golpe e os partidos políticos”, para mostrar que o golpe não foi só ditatorial, autoritário, não, foi pior. “Ele pesou para o conjunto da sociedade, liquidando-os. Foi a primeira e principal experiência política partidária que o Brasil tinha vivido de 1945 até 1964. Ali o povo brasileiro, pela primeira vez, estava aprendendo a reconhecer partido, a fazer política, de ver a diferença. E o golpe, a ditadura, veio pra isso, pra acabar com isso.”
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Traçando um paralelo com o golpe de 64 e os dias atuais, Pont disse que hoje a direita brasileira é mais profundamente antidemocrática. “Hoje ela não consegue conviver com a democracia, por isso que são mais perigosos. Porque são fascistas, são defensores de um estado de barbárie, de um estado de brutal individualismo, de acabar com a regulação, com o papel do Estado. E não tem como viver em sociedade sem essas conquistas da humanidade. É por isso que a gente tem que estar aqui, defendendo, apoiando e dando força para os movimentos que lutam hoje para manter esse país democrático”, ressalta.
“Nosso principal inimigo do avanço democrático no Brasil é a desmemória, a alienação, a manipulação das informações, o consumismo, que é o que o capitalismo propõe. As pessoas vivem no piloto automático, e não se inserem na história. Não pensam na história”, destaca a deputada estadual Sofia Cavedon (PT).
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Citando Paulo Freire, a parlamentar pontua que precisamos ser autores da história e não objetos. “Precisamos inserir de maneira soberana a leitura do mundo. Precisamos descomemorar o golpe militar. Marcar que há 60 anos atrás interromperam transformações maravilhosas que vinham para o Brasil, como as reformas de base, alfabetização em massa, a reforma agrária. Estamos vivendo os latifúndios, a violência, a desapropriação das terras indígenas, das áreas quilombolas. É um Brasil que não foi permitido transformar-se, através de uma imposição pelas armas.”
Para o vereador Pedro Ruas (PSOL), deveria ter um ato por dia para manter viva a lembrança do que aconteceu no passado para que não se repita no presente, como o que quase aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023. “A busca desses golpistas de plantão aí era essa. Era repetir 1964. E pra nós, felizmente, não aconteceu. Mas tem que estar com o olho aberto sempre”, ressalta.
Ele também informa que na semana do golpe, no dia 4 de abril, a Câmara de Vereadores fará um ato unitário com a participação dos partidos políticos, dos movimentos de direitos humanos, as centrais sindicais, as entidades estudantis, comunitárias, populares, MST e outros movimentos.
Ruas lembra que foi no dia 4 de abril de 1964 que houve a primeira vítima fatal da ditadura militar no Brasil. “Foi na Base Aérea de Canoas que o Coronel Alfeu Monteiro, da Aeronáutica, foi metralhado com mais de 40 tiros. Fica a nossa homenagem a este militar, que se negou a entregar a Base Aérea aos golpistas e disse que foi nomeado pelo presidente João Goulart e só a ele a entregaria. Ele foi morto ali. Depois veio a tortura, a censura e as perseguições a todos que resistiram ao autoritarismo”, recorda.
"Viemos aqui dizer não aos golpes e sim à democracia"
“Estamos lembrando do que foi o golpe civil militar de 1964 no Brasil e as mazelas que deixou na sociedade que até hoje luta para reformar as suas instituições e tirar o que ainda temos de ditadura no nosso estado. Lembrar das mazelas que gerou no nosso país, que vimos no período recente, a possibilidade de um golpe estatal, um golpe parlamentar, que derrubou uma presidente eleita, Dilma Rousseff, e também a possibilidade do perigo que é governos poder utilizar essa estratégia golpista como vimos em janeiro de 2023", destaca o presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS, Júlio Alt.
"Viemos aqui dizer não ao golpe de Estado, não a novos golpes de Estado, e sim à democracia, aos direitos humanos e aos direitos da população. Sabemos que isso é um grande trabalho, que é algo que pode demorar ainda anos e anos, mas estamos aqui juntos, de mãos dadas, reunidos.”
Para o professor, doutor em Psicologia Social e Comunicação Pedrinho Guareschi, as coisas começam a mudar quando a gente tem coragem de vir aqui no meio da tarde, para dizer não. “Temos de ter cuidado, não podemos deixar o Lula sozinho, não podemos ficar gritando contra ele, quando a briga é contra outro.”
Ele cita uma frase do Papa Francisco, em alusão a construção de golpe: “Criam-se condições obscuras, a mídia começa a falar mal das pessoas, dos dirigentes, e com a calúnia e a difamação essas pessoas ficam manchadas. Depois chega a justiça, as condena e, no final, se faz um golpe de Estado”. Guareschi alerta que os últimos golpes foram todos dados através do Parlamento. "E nós, vejamos o nosso Parlamento...”
Aos 82 anos, Jussara Cony, integrante histórica do PCdoB, lembra que todos os brasileiros que lutaram contra a ditadura foram extremamente sacrificados. “Quantos nós perdemos? Só de gaúchos foram quatro, assassinados na Guerrilha do Araguaia, que foi uma resistência fundamental, como todas as resistências que se fez, seja na floresta, seja no campo, seja nas ruas. Eu venho mais das ruas. Eu venho dessa turma. É muito honroso a gente ter participado da luta contra a ditadura militar e ter feito a resistência que fez. Todos que estão aqui, de uma certa forma, participaram. Até os mais jovens. Porque a gente vai herdando aquilo dos nossos antepassados, dos nossos ancestrais. Eu venho de uma família comunista, desde o meu bisavô, e da minha bisavó", afirma
Para Jussara é bom ver a juventude, assim como os mais velhos, os que resistiram, somados no ato. “Ver essa juventude, ver todo mundo chegando e as bandeiras tremulando, e a gente dizendo que todo santo dia é dia de lutar pelas liberdades democráticas, pela soberania, pelos direitos do nosso povo, isso aí é juntar toda a história do Brasil. E construir uma nova sociedade.”
Sem anistia
“É importante a gente ocupar as ruas para defender a democracia a qualquer momento. A gente entende que nos últimos anos, onde foi colocado em xeque o Estado Democrático, o povo precisa estar na rua nesse sentido. A gente teve uma tentativa de golpe no ano passado, que abalou várias estruturas, mas a gente se manteve firme na defesa da democracia. Na semana que já tem indícios dos atos golpistas, a nossa resposta tem que ser ocupar as ruas. Sem Medo, sem anistia para golpistas, ditadura nunca mais, cessar fogo na Palestina e a descomemoração dos 60 anos do golpe”, destaca o presidente da União Estadual dos Estudantes do RS, Alejandro Guerrero.
“É muito importante a gente tá relembrando os 60 anos e é uma data para a gente reivindicar a memória, a verdade, a justiça, a ditadura nunca mais. É muito importante a gente fazer um paralelo com o passado e hoje, no sentido de que não é possível anistiar os crimes do passado nem os crimes atuais. É partir das ruas e da mobilização que a gente vai conseguir impor e disputar a política no nosso país, pontua a estudante de enfermagem Vitória Ferraro, de 29 anos.
Para o atuador da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz Paulo Nunes Flores, rememorar ou descomemorar o golpe de 64 é vital. “Se a gente esquece, daqui a pouco os tanques estão passando de novo. A sombra do fascismo está sobre nossas cabeças. É urgente a reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos. Nós estaremos nas ruas dia 31 e dia 1º para trazer essa questão tanto da reinstalação da comissão como a luta pela abertura dos arquivos da ditadura militar e a punição de todos os que foram coniventes ou fizeram parte desses 21 anos que não acabaram.”
No domingo de Páscoa, dia 31 de março, a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz irá apresentar na Redenção o Amargo Santo da Purificação, que é a história de Carlos Marighella. E no dia 1º de abril realizarão um ato na Esquina Democrática sobre a questão direta dos desaparecidos.
* Com a colaboração de Walmaro Paz
Edição: Katia Marko