Lá estava ele. Baixinho, cercado por uma infinidade de seguranças, caminhando no cascalho do Parque de Exposições do Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Porteira de Rio Grande de Vacaria. O ano era o de 1966, mês de janeiro, entre os dias 19 e 23.
O baixinho era o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco. Estava na região para vistoriar obras militares no Rio Pelotas, que havia perdido uma ponte para as fortes chuvas de dois anos antes. O rio divide os estados de Santa Catarina e RS.
:: Morreu repetindo o seu nome: Meu nome é Rubens Paiva, meu nome é Rubens Paiva ::
Na época, eu tinha 13 anos e trabalhava com alguns primos num estande de lanches do parque. Sem remuneração. Coisas de família gringa daqueles tempos em que todos ajudavam e só um ficava com os lucros. Ao menos, a gente comia pastel e tomava guaraná frisante de graça.
Estava a uns dez metros do presidente. Meu pai, que estava ao meu lado, me falou quem era e disse para ficar quieto. Entendi a preocupação com a mente de um piá daquela época e que vivia em uma cidade ruralista, atrasada, onde quem mandava eram os fazendeiros. Era, digamos assim, conservadora, fascista em termos atuais, aliás, peculiaridade que tem ainda hoje, com leves solavancos para a esquerda em alguns momentos.
Passei a acompanhar, a partir daquele instante, a vida do país. Me intrigava aquela figura arrogante, petulante, que mandava no país. Acompanhava tudo pelo Jornal do Dia, que fechou poucos meses depois. Depois a Folha da Tarde, Diário de Notícias e Correio Riograndense (Caxias do Sul).
Me inteirei do golpe, aprendi com o que era possível ser publicado. Hoje tenho a sensação de que desconfiava de que alguma coisa estava errada. Muito errada. O lero-lero do comunismo era o tom dos papos. Até os padres e irmãos maristas do colégio nos assustavam com o tal de comunismo. Assustava todo mundo. Medo louco.
A mesma conversa de hoje, só que hoje o mundo é bem outro. Comunismo nem existe mais na sua plenitude, mas o assunto assusta gregos, troianos e tupiniquins. Muitos tupiniquins. Imaginem naquela época. A cabeça das pessoas, com poucas informações, era meia oca nestas questões políticas. Milico, sem generalizar, acha que o comunismo é a degeneração da humanidade, naquele e nestes tempos.
:: Lady Tempestade, a advogada que desafiou os milicos na época da ditadura ::
Castelo Branco (1897-1967) era o cara que estava na crista da onda. Presidente, depois de uma carreira militar cheia de promoções e de certo heroísmo como estrategista na Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Guerra Mundial na campanha contra o fascismo na Itália. Mesmo assim, os seus chefes o consideravam muito fechado e bastante sarcástico. Apesar destas qualidades nada extraordinárias, chegou à presidência com o golpe militar de 64 em razão da sua liderança e da articulação contra os nacionalistas reformistas representados pelo PTB da época (não este partido, já na cova, que está aí cheio de golpistas).
Assim, ele e sua turma dilapidaram o projeto das reformas de base de João Goulart e institucionalizaram a ditadura militar através de atos institucionais. Uma das primeiras medidas de seu governo foi a promulgação do Ato Institucional Número 2 que aboliu o pluripartidarismo e concedeu poderes ao presidente da República para cassar mandatos de deputados e convocar eleições indiretas.
Via tudo isso meio contrariado. O baixinho arrogante era um ditador de nascença, mesmo que falasse muitas bobagens e mentiras:
“A esquerda é boa para duas coisas: organizar manifestações de rua e desorganizar a economia.”
“Farei tudo que for possível para que se consolidem os ideais do movimento cívico da nação brasileira nestes dias memoráveis de abril, quando se levantou unida, esplêndida de coragem e decisão, para restaurar a democracia e libertá-la de quantas fraudes e distorções a tornavam irreconhecível.”
“Sustentarei, com todas as forças, a união, a integridade e a independência desta Pátria, dentro e fora de seus limites territoriais. Não apenas a herança admirável da unidade nacional, mas a concórdia de todos os brasileiros. Serei o presidente de todos eles e não o chefe de uma facção.”
“Nossa vocação é a liberdade democrática, governo da maioria com a colaboração e respeito das minorias. Os cidadãos, dentre eles também em expressiva atitude as mulheres brasileiras, todos, civis e soldados, ergueram-se, num dos mais belos e unânimes impulsos de nossa história, contra a desvirtuação do regime.”
“Defenderei e cumprirei com honra e lealdade a Constituição do Brasil, inclusive o Ato Institucional que a integra. Cumprirei e defenderei ambos com determinação, pois serei escravo das leis do país e permanecerei em vigília para que todos as observem com exação e zelo. Meu governo será o das leis, o das tradições e princípios morais e políticos.”
“Meu procedimento será o de um chefe de Estado sem tergiversações no processo para a eleição do brasileiro a quem entregarei o cargo a 31 de janeiro de 1966.”
Mesmo com tanta baboseira, o governo de Castelo Branco foi marcado pela criação de um aparato legal que procurou legitimar o progressivo endurecimento do regime. As sucessivas manifestações de oposição ao governo resultaram em intervenção em sindicatos, extinção de entidades de representação estudantis, invasão de universidades, detenções e prisões indiscriminadas. Para muitos, a saída foi o exílio. Uma das primeiras medidas do governo foi o rompimento de relações diplomáticas com Cuba, assinalando a mudança de orientação da política externa brasileira, que passaria a buscar apoio econômico, político e militar nos Estados Unidos.
:: A resistência construída durante a Ditadura: sempre lembrar, nunca esquecer! ::
Foi um governo carrasco do povo. Logo, surgiu o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão encarregado das atividades de informação e contrainformação no interesse das supostas ameaças que sofria a segurança nacional. E daí uma desgraça puxou a outra. Novos atos e novas restrições à liberdade. Eleições indiretas quase gerais, partidos extintos, implantação do bipartidarismo (Arena e MDB) e o AI-4, de 7 de dezembro de 1966, que convocava o Congresso Nacional para votar a nova Constituição, promulgada em 24 de janeiro de 1967. Foi o início cruel da ditadura, que depois esquentou com Costa e Silva, Garrastazú Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo, todos metidos a donos do Brasil. Um pior que o outro. Castelo Branco morreu em um acidente aéreo em 1967, ainda sem explicações muita sérias.
O mundo foi mudando. O Brasil voltou a uma democracia titubeante, mas os militares estiveram sempre por aí. Conspirando. Enchendo a paciência e se achando os garantidores da República e da democracia. Chegamos aos dias atuais e vemos aí milhares de pessoas defendendo golpe, liberdade, privações e um ex-presidente Jair Bolsonaro, mau milico de origem e contestado na época pelos próprios militares, querendo dar golpe e jogar o Brasil no lixo da história de novo. Tramou, fez gato e sapato das instituições, mas está se dando mal. Breve, talvez, vá para a cadeia. E o povo que o segue, sem noção do que é uma ditadura, vai chorar pelos cantos. Talvez esperneie, grite, chore, mas vai ficar para trás da história.
Golpe militar, nunca mais!
* Jornalista, ex-editor-chefe e ex-editor de Economia do Correio do Povo.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko