Direito à cidade é direito de também decidir e influenciar seus rumos futuros
No Brasil, algumas pessoas e organizações acreditam que a Lei só é boa quando atende seus interesses diretos. Evidentemente, este é um dos entraves para que consigamos viver em uma sociedade verdadeiramente democrática. Isto porque democracia significa, entre outras coisas, o direito a participar em condições de igualdade e o respeito à diferença. É uma situação que fica péssima quando o (mau) exemplo “vem de cima”, com indivíduos atuando em instâncias governamentais visando apenas atender seu grupo político ou interesses pessoais e não ao bem comum.
Por que começar com esta constatação? Porque o Plano Diretor, sua revisão e aplicação se encaixam perfeitamente nesta discussão. E primeiro é preciso relembrar:
Como a Lei geral que regula nossos municípios, o PD não só é importantíssimo como deve seguir alguns condicionantes previstos na legislação brasileira. Por exemplo, o Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001) diz no art. 40 que ele deve ser revisto a cada 10 anos e, no §4º que: “no processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”. Além disso, a democracia é explícita na existência de um capítulo IV, “Da gestão democrática da cidade”, onde o art. 43 nomeia instrumentos desta gestão democrática, como “debates, audiências e consultas públicas; conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal; iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.
Os últimos governos de Porto Alegre, na verdade como outras Prefeituras espalhadas pelo país, usam (ou não usam) os instrumentos previstos em Lei como lhes convém, como forma de atender seus interesses como grupo político e/ou econômico que responde à uma parcela da sociedade, e não como um órgão de Estado que deve responder à população como um todo.
Na capital gaúcha, isto fica explícito pelo que temos visto nos últimos anos: uma revisão do Plano Diretor que se arrasta há anos, contendo falhas do ponto de vista do que poderia ser uma discussão erguida sobre os pilares da participação social.
A coalizão governante atual tem usado o argumento de que é possível atualizar a legislação urbana sem precisar esperar todo o longo processo de discussão para revisão do Plano Diretor. Assim, no final de 2021, o Prefeito Municipal sanciona a Lei Complementar 930/2021, que “Institui o Programa de Reabilitação do Centro Histórico de Porto Alegre”, também conhecido como o Plano Diretor do Centro. Da mesma forma, logo em seguida será repetido o que já acontecera antes: em outubro de 2022, a Lei Complementar 960/2022 institui o “Programa +4D de Regeneração Urbana do 4o Distrito de Porto Alegre”, alterando regramentos urbanísticos específicos e estabelecendo incentivos urbanísticos e tributários.
Em outras palavras: sem participação real da população, se alteram regramentos que na verdade são estabelecidos pelo Plano Diretor. Com isso a cidade vai se fragmentando em planos específicos o que nos leva a questionar: Onde está a gestão democrática da cidade prevista em Lei? E não só isso: qual mensagem é passada sistematicamente com alteração de partes da legislação para contemplar apenas uma parte da população ligada ao empresariamento urbano. Como fazer com que a sociedade acredite que a lei é para todos nestas circunstâncias?
As propostas de alteração do PDDUA (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental) realizadas pelo município, modificam o modelo espacial, o regime urbanístico e a concepção de planejamento urbano prevista originalmente pela lei, mas, sobretudo, desconsideram a importância do processo histórico de construção democrática dessa legislação no município, o que leva muitas entidades da sociedade civil, reunidas no movimento ATUAPOA, a criticar publicamente as propostas.
Para além de alterarem o sentido original do PDDUA em um bem-acabado exemplo de “boiadas urbanísticas”, as alterações do regime urbanístico propostas pela municipalidade ficaram fragilizadas, pois muitas reuniões foram realizadas virtualmente e os grandes debates presenciais, como conferências e seminários, foram realizados em horários e lugares que impediam que a maioria da população pudesse participar. Também o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, órgão do sistema de planejamento e gestão urbana de Porto Alegre, foi tratado pelo governo municipal como uma espécie de “entrave democrático”, uma burocracia a ser vencida para que os projetos de lei pudessem ser aprovados na Câmara Municipal com maioria governista. Toda a tradição democrática de Porto Alegre se vê atropelada por tais “boiadas” e conselheiros e conselheiras, entidades da sociedade civil e moradores e moradoras dos bairros atingidos pelos projetos foram desconsiderados em tais processos.
Como visto até aqui, temos uma enorme contradição, alimentada pelos próprios atos da municipalidade: a falta de democracia no início do processo de revisão do Plano Diretor, praticamente sem consultas públicas, debates, audiências e propostas de Leis populares (como exigido pelo Estatuto da Cidade), acaba levando à paralisia e ao atraso do processo, pois este acabou judicializado. O atraso implicou na elaboração de projetos de Leis pontuais, como os do Centro e do 4º Distrito. Além disso, ao invés de finalmente abrir o processo para participação mais descentralizada e com rodadas para revisão do Plano nas Regiões de Gestão e Planejamento da Cidade, o governo municipal contrata uma consultoria estrangeira para refazer o processo do Plano Diretor. Refazer, por sinal, contraria o próprio Plano, que diz explicitamente, no parágrafo único do art. 2º, que “na aplicação, na alteração e na interpretação desta Lei Complementar, levar-se-ão em conta seus princípios, estratégias e diretrizes”.
De forma coletiva necessitamos nos mobilizar em Porto Alegre para que sejam cumpridos os princípios democráticos e de direito à cidade e à função social da propriedade!
Assim, propomos:
Retomada de um sistema de Conferências da Cidade nos três níveis: Nacional, Estadual e Municipal e, mais importante, que as proposições vindas destas reuniões sejam efetivamente levadas em consideração pelos gestores públicos;
Reestruturação e valorização de instâncias locais de participação: desde Orçamento participativo aos Conselhos. Principalmente o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental, Conselho de Habitação, etc.
Controle social em relação ao funcionamento e transparência das instâncias participativas, a composição dos membros e a forma de escolha dos mesmos. Um exemplo bem simples: se um Conselho tem como representatividade 1/3 de membros do Governo; 1/3 de entidades empresariais e 1/3 de representantes dos cidadãos. Dependendo da coalizão de forças a representação dos cidadãos poderia ficar enfraquecida gerando um déficit democrático dentro da instância de participação. Neste cenário seria importante estar atentos à nova composição do CMDUA.
Estabelecer um diálogo mais próximo com a Câmara Municipal para que os novos vereadores/vereadoras eleitos se apropriem do processo de revisão do PDDUA da visão da comunidade e da problemática das Regiões desde o início do processo.
Criar mecanismos de comunicação, diálogo e elaboração de material que explique a importância do Plano Diretor e das possíveis transformações urbanas da cidade que seriam geradas por ele nos próximos dez anos.
Direito à cidade é direito de também decidir e influenciar seus rumos futuros. O Planejamento Urbano não pode ser assunto apenas de uns poucos, mas sim para o conjunto mais amplo da população e, principalmente para a juventude e as novas gerações.
* Mario Leal Lahorgue, professor do Departamento de Geografia da Ufrgs e pesquisador do Observatório das Metrópoles; Vanessa Marx, Professora do Departamento de Sociologia da Ufrgs e Coordenadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles.
* Este é um artigo de opinião. A visão do autor e da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko