Unindo o campo à cidade, movimentos populares deram início a um projeto inédito de transição de sistemas alimentares para, no curto prazo, retirar do “Mapa da Fome” cinco milhões de brasileiras e brasileiros. Intitulada de Missão Josué de Castro (1908-1973), em homenagem ao médico e geógrafo pernambucano, a iniciativa é encabeçada pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), pelo Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Federação Única dos Petroleiros, Unisol Brasil e mais 13 organizações da sociedade civil organizada.
:: Missão Josué de Castro é lançada no Senado e pretende garantir alimentação para 5 milhões de pessoas ::
A novidade foi apresentada e debatida em audiência pública promovida, nesta segunda-feira (11), pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, do Senado Federal, em Brasília (DF). A sessão presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS) contou com a presença do ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Paulo Teixeira, e do secretário-geral da Presidência da República, Flávio Camargo Schuch. A presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elisabetta Recine, a secretária-executiva do MDA, Fernanda Machiaveli, e o presidente da Fundação do Banco do Brasil, Kleytton Guimarães, também estiveram presentes. O ato reuniu lideranças sindicais, pesquisadores, militantes da agroecologia, parlamentares e representantes do governo federal.
O presidente da CDH e propositor da audiência pública, senador Paulo Paim (PT-RS), alertou para o cenário de fome no Brasil. Para ele, é inadmissível que mais de 60 milhões de brasileiros vivam na pobreza, e cerca de 12 milhões na extrema pobreza, enquanto o país se coloca como o maior produtor e exportador de alimentos no mundo.
“A mensagem de Josué ecoa no centro da consciência coletiva. A fome não é um acidente, mas sim uma manifestação de silêncios deliberados e, portanto, de injustiças estruturais. Ele nos desafia a questionar as causas dessa conspiração de silêncio que perpetua a fome instigando-nos a agir com coragem e determinação”, disse Paim, referindo-se a Josué de Castro (1908-1973), médico, escritor, geógrafo, cientista social, político e diplomata, que se notabilizou por estudos e esforços voltados ao combate à fome.
Construção da soberania alimentar
A representante da FASE, Maria Emília Lisboa Pacheco, reconheceu a importância da retomada dos conselhos, pelo governo federal, o que, na avaliação dela, vem reforçando as ações de defesa de uma plataforma mundial de combate à fome. Ela disse esperar que a missão seja uma resposta para a construção da soberania alimentar aliando políticas que incentivem a agroecologia, a preservação ambiental promovendo justiças ambiental, alimentar e social.
“É preciso refletir de forma crítica porque é preciso ver que essa produção baseada em monocultivos e da destruição do meio ambiente não pode nos dizer que estamos alimentando o mundo. Todo o tempo nós temos que nos perguntar o que estamos ou o que não estamos comendo. Nessa complexidade é preciso associar a relação entre saúde, meio ambiente e alimentação. São interdependentes para garantir a justiça social, a justiça ambiental e alimentar.”
Segundo ela, a missão Josué de Castro é inspirada em sistemas alimentares de base familiar, camponesa, agroecológica, solidária, e baseada em princípios como da reciprocidade e a valorização dos circuitos de proximidade. Também chama a atenção para a importância de trabalharmos a distribuição democrática, por isso para a relação campo-cidade, a cidade não é só lugar do consumo ela também produz alimentos e essa interação é virtuosa.
A Missão Josué de Castro estima construir uma rede de produção e abastecimento, impactando inicialmente, sobretudo, o Nordeste com 1,5 milhão de pessoas assistidas, o mesmo quantitativo no Sudeste. No Sul, serão mais 1 milhão de beneficiários e no Norte e Centro-Oeste outros 500 mil em cada região.
O membro da coordenação do MPA, frei Sérgio Antônio Gorgen, destacou que a missão é resultado de muito esforço e a soma de estudos e ações práticas de militantes do campo de diferentes gerações. Segundo Gorgen, “levar alimento saudável a apenas 2,5% da população brasileira pode parecer modesto, mas a experiência da ASA na construção de cisternas mostra que a estratégia pode lastrear políticas públicas e mudar a realidade da fome no país”.
“A Missão Josué de Castro procura integrar um conjunto de políticas públicas que interagem entre elas, ver que campo e cidade tem um vínculo muito forte e o alimento que é produzido no campo tem que chegar à cidade pelas nossas mãos e não pelas grandes redes de supermercados, não pelas mãos da indústria que transforma o alimento simplesmente em um produto de mercado”, pontuou o frei.
Alternativa ao modelo hegemônico de produção de alimentos
De acordo com as diretrizes do projeto, a Missão Josué de Castro propõe uma alternativa ao modelo hegemônico de produção de alimentos estabelecido pelo monocultivo, pela perda da diversidade, na centralização da posse da terra e no suprimento do mercado internacional. Nessa perspectiva, a ideia é trabalhar a “afirmação dos povos do campo, das águas e das florestas”; buscar a “unidade da luta por terra e território”; encarar as mudanças climáticas como elemento transversal e impactante em todos os setores e, promover a “cooperação e formas associativas”.
A Missão Josué de Castro se baseia ainda na “indissociabilidade entre agroecologia e o abastecimento popular de alimentos”; no “fortalecimento da economia feminista e de uma nova geração camponesa”; na “economia da sociobiodiversidade e antirracista” na alimentação atrelada e saúde pública; e na “articulação e tensionamento com os setores de energia e mineral”.
A iniciativa popular será desenvolvida em cinco frentes principais: a construção de uma Rede Popular de Abastecimento e Acesso Alimentar; a construção de infraestrutura produtiva, de processamento e integração logística; transição energética; capacitação e inovação social de tecnologias; e integração com a economia da sociobiodiversidade da Amazônia às demais regiões e ou biomas brasileiros.
:: Movimentos sociais anunciam Missão Josué de Castro para alimentar 5 milhões de pessoas ::
O ato de lançamento é a continuação de um processo de construção e articulação da Missão Josué de Castro. A missão foi anunciada durante o ato público que celebrou os 20 anos do Programa Cisternas e a retomada da execução da tecnologia social no Semiárido brasileiro, ocorrido em novembro do ano passado, em Olinda (PE). Outro anúncio foi feito durante o ato de encerramento da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, em dezembro. A diversidade de movimentos sociais e articulações seguem participando do 3º Seminário da Missão Josué de Castro, que iniciou com o lançamento e vai até quarta-feira, 13 de março, onde as diretrizes para a Missão devem ser estruturadas.
Alimentação saudável
Na opinião dos debatedores, essa política pública de combate à fome no Brasil também precisa estar atenta à diversidade da composição da cesta básica, a garantia das isenções tributárias desses itens, como também oferecer uma legislação que viabilize o acesso a produtos mais saudáveis e naturais contra qualquer benefício à produtos industrializados e processados.
“No Brasil, o consumo desses alimentos [processados] vem aumentando nas últimas décadas e mais intensamente entre as famílias de menor renda. É importante ressaltar que a partir de 2023 esses produtos já são mais baratos do que alimentos frescos no Brasil, como carnes, leites, frutas, entre outros. E tal fato tem consequências desastrosas para o Estado e para a sociedade brasileira. Apenas o excesso de peso, uma das condições diretamente ligadas ao consumo de ultraprocessados, representa um custo direto anual de R$ 1,5 bilhão para o tratamento de doenças não transmissíveis no SUS “, alertou a pesquisadora e representante da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, da Universidade de São Paulo (USP), Fernanda Marrocos.
Agricultura familiar
Os representantes do governo federal foram unânimes em reconhecer que o país só vai conseguir implantar uma Política Nacional de Abastecimento Popular ouvindo a sociedade e garantindo o orçamento necessário para priorizar esse plano.
O Ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, disse que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem priorizado investimentos e ações para estimular a agricultura familiar através de programas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Programa de Compras Institucionais e a retomada da reforma agrária. Além disso, ele citou a garantia da oferta de crédito por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o programa para aquisição de novas máquinas.
“Qual é o programa de compras mais virtuoso da agricultura familiar? É o PAA, é o Programa de Aquisição de Alimentos. Você compra do agricultor familiar e faz a doação naquelas comunidades mais vulneráveis. Nós finalizamos o ano de 2023 com R$ 1 bilhão. Só para vocês terem um dado comparativo, em 2022 foram gastos R$ 60 milhões. E esse é um programa pelo qual nós passamos a comprar dos mais pobres, passamos a comprar de comunidades indígenas, quilombolas, extrativistas, assentados da reforma agrária, mulheres. Quase 75% dos programas no Nordeste são feitos por mulheres. Enfim, o PAA chegou na base, e é por isso que a gente quer a recomposição do seu orçamento em 2024, para ter o mesmo desempenho ou melhor que em 2023”, explicou Teixeira.
Mais investimento
Em 2023, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), foram direcionados R$ 364,2 bilhões em crédito para o agronegócio através do Plano Safra, enquanto R$ 71,6 bilhões em crédito foram para a agricultura familiar.
Na visão da presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Elisabetta Recine, o apoio do poder precisa ficar evidente, inclusive na redução dessas desigualdades orçamentárias:
“É muito importante que a gente saiba que nenhum direito está garantido por si, mas a partir da mobilização, do alerta, da resistência e resiliência dos povos. E o direito à alimentação na nossa Constituição é um desses exemplos. A gente precisa ficar atento para que esse direito não só continue explicitamente no nosso texto constitucional, mas que ele vire realidade no cotidiano da política pública, na destinação de orçamento, na articulação de metas.”
Cooperativismo
A superintendente de Desenvolvimento Social e Gestão Pública do BNDES, Ana Cristina Rodrigues da Costa, informou que a entidade tem priorizado cada vez mais a parceria com o cooperativismo de crédito como instrumento de apoio à agricultura familiar sustentável, no Plano Safra. Segundo Ana Cristina, nove entidades já estão credenciadas para que o pequeno produtor tenha mais possibilidade de acesso à linha de crédito:
“Em 2023, houve um resultado histórico para o cooperativismo: três entre as quatro maiores repassadoras do BNDES, pela primeira vez na história, foram as cooperativas de crédito. Com isso, queremos estender ainda mais o Plano Safra com a sua própria revisão voltada tanto para a Região Nordeste quanto também para o fomento à agroecologia, em que queremos buscar, com o aumento dessa nossa capitalidade, via também o cooperativismo de crédito, aumentar a nossa atuação. Cerca de 59% do total de aprovações no Plano Safra foi para as cooperativas. Os bancos cooperativos já aprovaram R$ 3,4 bilhões para mais de 102 mil operações no período 2023/2024.”
Josué de Castro
Josué Apolônio de Castro nasceu em Recife e teve como último cargo o de embaixador brasileiro junto à ONU. Reconhecido mundialmente por sua luta contra a fome, foi autor de mais de 30 obras, sendo Geografia da Fome: A Fome no Brasil, lançada em 1946, uma das mais destacadas. O livro apresenta um retrato trágico da situação da fome no país e suas raízes profundas.
Estudioso e ativista, Castro foi um pioneiro nas pesquisas e batalhas para eliminar a desnutrição e o subdesenvolvimento. Depois de muitos anos dedicados ao ensino, chegou a exercer a Presidência do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Seu prestígio o levou a receber diversos prêmios, entre os quais a comenda Franklin D. Roosevelt da Academia de Ciências Políticas dos Estados Unidos. Já o Conselho Mundial da Paz lhe ofereceu o Prêmio Internacional da Paz e o governo francês o condecorou como Oficial da Legião de Honra. Foi ainda indicado ao Nobel da Paz nos anos de 1953, 1963, 1964, 1965 e 1970.
Esse lastro, no entanto, não o livrou da perseguição pelo regime militar (1964-1984). Logo após o golpe, teve seus direitos políticos suspensos pela ditadura.
Impedido de morar no Brasil pela ditadura, exilou-se em Paris onde lecionou até a morte no Centro Universitário de Vincennes (Universidade de Paris VIII) e fundou e dirigiu o Centro Internacional para o Desenvolvimento.
Confira a transmissão ao vivo
* Com informações de Kleber Nunes, da ASCOM ASA, e da Agência Senado.
Edição: Katia Marko