OP precisa voltar a ter um poder soberano sobre os investimentos, retomando seu caráter deliberativo
Este artigo busca avaliar e problematizar a participação cidadã na cidade de Porto Alegre, a fim de incidir na agenda pública tendo como horizonte as eleições municipais de 2024.
A cidade sede do Fórum Social Mundial e do Orçamento Participativo (OP) perdeu nos últimos 15 anos espaços institucionais de participação. Apesar da resistência de atores e movimentos sociais para tentar incidir no processo, a vontade política de enfraquecer estes espaços, sejam eles conselhos, decisões sobre orçamento e instrumentos de gestão urbana, como a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (PDDUA), foi perpetuando-se ao longo dos anos. Os retrocessos e as perdas que vem ocorrendo na gestão da cidade, derivam da implementação do projeto neoliberal de desenvolvimento urbano, que se choca com o protagonismo das camadas populares e suas demandas de bem-estar.
A partir desse balanço negativo sobre a participação nas políticas públicas de Porto Alegre, tentamos oferecer subsídios para a retomada da democratização como dimensão chave para o desenvolvimento inclusivo e sustentável em três eixos: no planejamento urbano, nas políticas setoriais e nas prioridades orçamentárias do município, todas elas considerando as dimensões de gênero, raça, classe e faixas etárias.
Em relação ao planejamento urbano chamamos atenção para a revisão do PDDUA em Porto Alegre. O PDDUA (Lei Complementar 434/99 alterado pela Lei Complementar 646/2010) consiste em um instrumento de gestão urbana abrangente que define o que os setores privado e público podem e devem fazer nas oito regiões de planejamento de Porto Alegre. Cabe ressaltar assim a importância e a obrigatoriedade da participação social em cada revisão do PDDUA. A revisão prevista para acontecer em 2020, foi iniciada tardiamente e suspensa no contexto da pandemia de covid-19.
Em 2023, após a justiça determinar a realização das eleições para o Conselho do Plano Diretor (CMDUA), a Prefeitura suspendeu a revisão após a realização da Conferência Municipal, e disse que vai enviar o novo Plano Diretor para a Câmara de Vereadores somente em 2025, após as eleições municipais. Muitas reuniões do Plano foram realizadas de forma virtual e momentos importantes como Conferências e Seminários ocorreram em espaços privados e em horários comerciais que impossibilitaram a participação de quem trabalha e estuda. Para o próximo período de retomada da revisão, em 2025, será necessário replanejar o processo para ampliar e facilitar de fato a participação, considerando a diversidade da população nas dimensões de gênero e de raça, com novas rodadas de leitura da cidade e do apontamento das soluções.
Atrelado ao PDDUA e ainda relacionado com a participação destacamos a disputa acirrada que iniciou em janeiro deste ano nas eleições de representantes para o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA). Por um lado, setores comprometidos com o direito à cidade e a reforma urbana, e por outro representantes do mercado imobiliário que vem ampliando de forma intensa a exploração privada de áreas urbanas, como na Orla do Guaíba, no 4o Distrito e no Centro Histórico, e expandindo territórios com novos empreendimentos, verticalização e moradias em áreas públicas.
Nas eleições que ocorreram nas oito regiões para os conselheiros, a coalizão que une os capitais imobiliários e as forças de apoio ao prefeito Melo (MDB/PL) utilizou-se de farto poder econômico no transporte de eleitores, garantindo a maioria dos conselheiros. O interesse neste conselho demonstra a importância do PDDUA, que tem sido pouco compreendido por grande parte da população, mas tem sido prioritário na agenda do capital imobiliário. Caberia também no próximo período um processo de sensibilização na população sobre a importância do PDDUA e do CMDUA para a cidade de Porto Alegre, incentivando mais participação social para ampliar a correlação de forças, a fim de que seja um processo democrático e transparente. Também é necessário revisar o regimento do CMDUA para dar equilíbrio, impedir fraudes e abusos, e institucionalizar os Fóruns de Delegados das Regiões de Planejamento de Porto Alegre.
Em relação aos conselhos municipais também vem ocorrendo retrocessos na participação da sociedade. No caso de Porto Alegre os Conselhos surgiram ou foram ampliados e democratizados a partir do retorno das eleições diretas nas capitais, em 1985, e a posterior elaboração da nova Lei Orgânica Municipal (LOM), a lei maior da cidade, em 1990, considerada uma das leis mais progressistas e democráticas entre as capitais. A partir de então ocorreu a gradativa ampliação numérica, chegando a 29 Conselhos nos anos 2000. Nesse período ocorreu a ampliação das políticas cobertas por participação nos Conselhos, constituindo uma importante dimensão da democracia de Porto Alegre.
Essa situação mudou com a ascensão do projeto neoliberal iniciado na eleição de Marchezan Jr (PSDB/PP, 2017-2020) e que vem sendo intensificado por Sebastião Melo, desde 2021 (MDB/PL). Os Conselhos passaram a ser atacados, sendo alvo de projetos para a restrição de suas atribuições e tolhimento do seu poder de controle social. Estes governos encaminharam projetos de leis à Câmara de Vereadores para a) mudar a Lei Orgânica Municipal e retirar o controle social deliberativo dos Conselhos e b) retirar recursos de Fundos municipais ligados aos Conselhos transferindo-os ao caixa do Município, enfraquecendo a intervenção nas políticas públicas. Houve resistência do Fórum Municipal dos Conselhos da Cidade, de movimentos sociais, parlamentares e acadêmicos comprometidos com a democracia participativa. Não obstante, o governo conseguiu retirar os recursos dos Fundos e extinguiu vários deles.
O governo de Sebastião Melo mudou o poder deliberativo e a composição do Conselho Municipal da Educação e do Transporte. Mas na área da saúde, onde existe uma forte atuação da sociedade civil desde os anos 1980, este objetivo foi barrado por decisão judicial movida pelo Conselho Estadual de Saúde e organizações sociais. Assim, o Conselho da Saúde continua exercendo o controle social contra as medidas privatizantes de caráter neoliberal que vem sendo adotadas pelo governo Melo. Estes retrocessos mostram a necessidade da defesa e do fortalecimento dos Conselhos por todos os setores comprometidos com a democratização das políticas públicas em Porto Alegre.
Mas o maior retrocesso visível em termos da redução dos espaços de participação cidadã na cidade foi o processo de esvaziamento do Orçamento Participativo. Esta experiência, que se tornou referência mundial em termos de democratização da gestão urbana, foi sendo paulatinamente desfigurada, reduzindo totalmente a sua incidência nos gastos públicos. Depois de duas décadas de governos conservadores e neoliberais, a percentagem dos investimentos decididos pelo OP no conjunto da despesa se tornou insignificante.
São destinados valores ínfimos para as demandas: R$ 10 milhões em 2022, R$ 15 milhões em 2023 e R$ 20 milhões para 2024, respectivamente 2,17%, 2,93% e 2,35% dos investimentos (novas obras, equipamentos, reformas) desses anos. Isto significa a exclusão das periferias mais carentes em infraestrutura e serviços e a priorização dos recursos em grandes projetos urbanos, inclusive com empréstimos nacionais e internacionais. Hoje, são 2.395 demandas aprovadas pelas comunidades e não executadas pela Prefeitura. É um retrocesso da política de inversão de prioridades que esteve na origem do OP de Porto Alegre.
Além disso, mudanças nas regras de funcionamento burocratizaram o processo, retirando o poder dos cidadãos e aumentando o controle da prefeitura sobre as decisões. O resultado foi uma perpetuação de lideranças acomodadas e a reinstaurarão de mecanismos clientelistas na relação entre a Prefeitura, os cidadãos e a Câmara de Vereadores. Além disso, houve redução da transparência das decisões. Até o primeiro governo Fogaça (2005-2008) o site da prefeitura mostrava as obras dos investimentos do OP, permitindo uma fiscalização efetiva. Depois disso a cidadania não tem acesso ao efetivamente realizado, o que está atrasado e o que foi esquecido. O OP é hoje uma pálida sombra do que já foi no passado.
É urgente que se produza uma reformulação do funcionamento do OP. O OP precisa voltar a ter um poder soberano sobre os investimentos, retomando seu caráter deliberativo. Não é aceitável que um processo voltado para a democratização da gestão pública se transforme em um mecanismo de repartição de migalhas pelas comunidades. Além disso, o poder público precisa repactuar com as comunidades o resgate das demandas não executadas e uma reforma do regimento interno, democratizando seu funcionamento. Os cidadãos precisam retomar o controle sobre o processo. Uma reforma do Orçamento Participativo é mais do que necessária. Não se trata apenas de uma volta ao passado, com o OP recuperando o peso e a centralidade política que tinha nos seus primeiros anos.
O OP precisa ser renovado à luz das múltiplas boas experiências de participação que existem hoje pelo mundo. Porto Alegre precisa também aprender com o que vem sendo feito em termos de participação em muitos outros países. A utilização das Tecnologias de Informação para ampliar o alcance da participação (China), a adoção de metodologias que contribuam para qualificar a participação de todos no processo (Portugal), a criação de mecanismos que permitam uma efetiva transparência dos dados financeiros e da realização dos investimentos públicos (Alemanha), são desafios que precisam ser enfrentados para gerar um novo ciclo virtuoso de participação cidadã.
O OP precisa voltar e se renovar como processo de gestão democrática e de justiça socioespacial que tornou Porto Alegre admirada no mundo. Em síntese, as eleições de 2024 vão decidir se Porto Alegre vai retomar a democratização e a inclusão social na gestão urbana ou se vai aprofundar os visíveis retrocessos na cidade.
* Luciano Fedozzi, Professor Titular do Departamento de Sociologia da Ufrgs, membro do Comitê Gestor nacional do Observatório das Metrópoles; Vanessa Marx, Professora do Departamento de Sociologia da Ufrgs e Coordenadora do Núcleo Porto Alegre do Observatório das Metrópoles; Tarson Nunez, Doutor em Ciência Política pela Ufrgs, pesquisador do Observatório das Metrópoles.
* Este é um artigo de opinião. A visão dos autores e da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko