Rio Grande do Sul

TRABALHO DECENTE

Atuação das diversas instituições no combate ao trabalho escravo foi tema do último painel do seminário em Bento Gonçalves

Seminário sobre trabalho escravo encerrou na manhã desta quarta-feira (28) após dois dias de debates na Serra gaúcha

Brasil de Fato | Bento Gonçalves |
A juíza Daniela Müller abordou parte da história do enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil - Foto: Guilherme Lund

"O Papel das Instituições no Enfrentamento ao Trabalho Escravo". Esse foi o tema do quarto painel do seminário "Direito Fundamental ao Trabalho Decente: caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo".

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A atividade ocorreu na manhã da última quarta-feira (28) e teve como painelistas a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (RJ) e gestora nacional do Programa de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, Daniela Rocha Müller, o juiz Federal da 5ª Vara Criminal de Caxias do Sul, Rafael Farinatti Aymone, a procuradora do Trabalho Lys Sobral e o auditor-fiscal do Trabalho Rafael Zan. A mediação ficou a cargo do juiz do TRT-4 Charles Lopes Kuhn.

A juíza Daniela Müller abordou parte da história do enfrentamento ao trabalho escravo no Brasil, cujas primeiras ações efetivas ocorreram nos anos 1980, a partir da Fiscalização do Trabalho. A magistrada também fez referência ao artigo 149 do Código Penal, existente desde os anos 1940, mas ineficaz, segundo sua avaliação, por ter sua primeira versão muito sintética e sem detalhamento.

Essa situação, como sublinhou a juíza, só começou a mudar a partir de 2003, quando foi lançada uma política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo, com a participação de diversas instituições. Nesse contexto, o referido artigo também foi reformado, tornando-se mais analítico, descritivo, capaz de um enquadramento maior de casos práticos.

No entanto, o efeito desejado, segundo a painelista, não ocorreu, já que até hoje há uma disputa pela interpretação na aplicação do artigo. "Muitos entendem que apenas uma violência evidente ou a restrição de liberdade pode caracterizar trabalho escravo. Mas uma doméstica, por exemplo, pode sair à rua, fazer compras, e continuar em condições de escravidão", pontuou.

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Para Daniela, é preciso superar alguns mitos que se alimentam mutuamente para chegar a uma superação dessas divergências. Ela citou, como exemplos, as ideias de que "de onde ele vem é pior do que aqui, então ele deve estar acostumado", ou o pensamento de que trabalho escravo é um pedaço do passado, quando, em muitos casos, as ocorrências estão nas cadeias mais modernas e rentosas da nossa sociedade.

"O nosso desafio é nos interrogarmos sobre esses preconceitos, como sugere o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. O racismo, o preconceito em geral, fazem parte dos nossos ambientes. Vergonhoso é não tentarmos melhorar nesse sentido", concluiu.

Esfera criminal

Como observou o juiz Rafael Farinatti, o combate ao trabalho escravo assemelha-se a uma corrida de revezamento. "O Ministério do Trabalho começa e passa o bastão ao Ministério Público do Trabalho, que aciona a Justiça do Trabalho para julgamento e que passa, por sua vez, à Justiça Criminal", comparou. "E aí percebo uma insatisfação: é como se caísse em um peso morto e nada mais acontecesse", ilustrou. "Isso porque, embora estejamos na mesma corrida, o terreno da Justiça Criminal é diferente", apontou.

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Conforme o magistrado, algumas características da Justiça Criminal podem causar essa impressão. "Nem tudo que é alvo de repressão em outras esferas do Direito é também na esfera penal", exemplificou. "Nós temos o foco na vítima, claro, mas também nas garantias do acusado", complementou. Segundo ele, o artigo 149, apesar de ser uma conquista, ainda causa insegurança na área penal, por trazer adjetivos considerados imprecisos. "A perspectiva animadora é começar a haver jurisprudência que dê mais sentido a essas interpretações", considerou.

Articulação

Como explicou a procuradora do Trabalho Lys Sobral, o papel do Ministério Público do Trabalho, além dos procedimentos típicos da área jurídica, é articular a política pública de combate ao trabalho escravo com as demais instituições. "Temos um modelo elogiado e copiado em diversos países do mundo justamente porque a base da atuação é interinstitucional", frisou.

Na área jurídica, a procuradora apontou a preocupação do MPT na produção de provas, por meio de cautelares para bloqueio de bens ou valores, ou retenção de documentos, por exemplo. Também, segundo a procuradora, o MPT, dentre as demais possibilidades, pode levar ao Judiciário a "fiscalização" das políticas públicas relacionadas, em pedidos como os de obrigação de destinação orçamentária, entre outros.

Conforme a palestrante, o MPT também se envolve nos projetos que visam dar algum meio de vida às pessoas resgatadas, por meio do diálogo entre instituições públicas e privadas e no estabelecimento de parcerias. Como exemplos, ela citou, dentre outros, o projeto Vida Após Resgate.

Fiscalização

Em sua participação, o auditor-fiscal do Trabalho Rafael Zan explicou como funciona a tramitação de casos de trabalho escravo na inspeção do Trabalho e mencionou o aumento de denúncias nos últimos anos, acompanhado do expressivo aumento de pessoas resgatadas em condições de trabalho escravo.

Segundo frisou, é importante que o fluxo adequado seja seguido nesses casos, sob pena de prejudicar as ações fiscais e a posterior responsabilização dos violadores. Nesse sentido, citou um caso em que a própria polícia fez um resgate, mas só depois levou o caso ao MTE, quando a situação já havia sido modificada e a fiscalização seria impossível.

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O auditor também trouxe números relacionados às ações fiscais, aos setores em que mais aconteceram resgates e aos estados de maior ocorrência. Como ponto positivo, ele citou o caso dos safristas da Serra gaúcha que, após o resgate dos 207 trabalhadores de vinícolas há um ano, experimentaram um aumento expressivo no número de regularizações. "Esse número quase triplicou", comemorou, ao atribuir a melhoria às ações fiscais do MTE e também à atuação das demais instituições envolvidas no enfrentamento do trabalho escravo.

* Com informações da Secom/TRT-4


Edição: Katia Marko