Rio Grande do Sul

TRABALHO DECENTE

‘Terceirização é a porta de entrada para o trabalho escravo’, afirma presidente do TST, Lelio Bentes Corrêa

Seminário reúne Judiciário em Bento Gonçalves, após um ano do resgate de trabalhadores em situação análoga à escravidão

Brasil de Fato | Bento Gonçalves |
Seminário "Direito Fundamental ao Trabalho Decente: caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo" iniciou na noite desta segunda-feira (26) - Foto: Guilherme Lund

O seminário "Direito Fundamental ao Trabalho Decente: caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo" iniciou na noite desta segunda-feira (26), em Bento Gonçalves, com o auditório do hotel Dall'Onder cheio. O evento prosseguirá com palestras, rodas de conversa e debates até a próxima quarta-feira. 

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Na abertura, o diretor da Escola Judicial do TRT-4, desembargador Fabiano Holz Beserra, destacou a importância do evento no cenário atual do trabalho no Brasil, bem como o papel das instituições que atuam no combate ao trabalho escravo contemporâneo.

"Parece que estamos enxugando gelo, mas existem progressos", ressaltou, ao destacar os casos de empresários que o procuraram para afirmar que querem promover o trabalho decente nas suas cadeias produtivas.


O diretor da Escola Judicial do TRT-4, desembargador Fabiano Holz Beserra, destacou a importância do evento no cenário atual do trabalho no Brasil / Foto: Guilherme Lund

Já o presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), desembargador Ricardo Martins Costa, afirmou que a efetivação do trabalho decente é a própria razão de ser da Justiça do Trabalho. Isso porque, conforme o magistrado, apesar de mais recente, o conceito de trabalho decente atualiza regramentos sempre observados pelo Direito do Trabalho, como a Convenção de Versalhes, que definiu que o trabalhador não pode ser tratado como uma mercadoria ou como artigo de comércio.

"O trabalho decente é o trabalho revestido de autêntica capacidade de resgatar a dignidade humana, capaz de equilibrar as desigualdades e de garantir a governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável", declarou.

O magistrado também lembrou que, há um ano, foram resgatados trabalhadores da região de Bento Gonçalves na "indecência da escravidão". "Aquele resgate não foi algo isolado", lamentou Martins Costa, ao apontar que em 2023 mais de 3 mil trabalhadores foram encontrados nas mesmas condições no Brasil.

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"A negação mais eloquente do trabalho decente é o trabalho escravo", frisou o presidente. "Por isso é simbólico que esse Seminário esteja sendo feito em Bento Gonçalves, para que atualizemos a nossa memória na construção da convicção de que os Direitos Humanos não são efetivados de uma vez para sempre, mas sim dependem e são a expressão das lutas cotidianas e contínuas", concluiu.


O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4), desembargador Ricardo Martins Costa, afirmou que a efetivação do trabalho decente é a própria razão de ser da Justiça do Trabalho / Foto: Guilherme Lund

Presidente do TRT destaca papel da fiscalização

Em coletiva à imprensa, Martins Costa afirmou que a importância de realizar o seminário justamente em Bento Gonçalves está exatamente naquilo que aconteceu na cidade, envolvendo o trabalho nas vinícolas.

“Mas é importante esse evento, porque ele está num momento em que a comunidade, principalmente os empresários aqui da região, têm tomado essa consciência. Claro que teve um papel fundamental da fiscalização. E hoje aqui nessa safra não há contratos de prestação de serviço.”

Segundo Costa, as empresas estão contratando diretamente por um contrato típico, modalidade de trabalho por prazo determinado, que tem previsão na CLT. “As empresas partiram para a compreensão que quando a gente terceiriza uma atividade, nós estamos terceirizando o nome da nossa empresa”, destaca.

Segundo divulgado na imprensa local, em 2023 eram 2 mil trabalhadores com carteira assinada e direitos garantidos. Em 2024 o número saltou para 7.162 trabalhadores safristas com carteira assinada e direitos reconhecidos. Só em Bento Gonçalves, o número de safristas com carteira assinada passou de 31 (em 2022) para 60 (em 2023) e 1.477 (em 2024).

Costa ressalta que o Tribunal Superior do Trabalho e especialmente o Conselho Superior da Justiça do Trabalho quer demonstrar seu compromisso institucional com o enfrentamento do trabalho escravo, tráfico de pessoas, proteção do trabalho de imigrantes.

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"São temas que estão interrelacionados. E esse seminário, na verdade, vem se apresentar como se fosse uma centelha, como se fosse a deflagração de um processo. Nós queremos debater o tema escravidão contemporânea e a forma de erradicá-la definitivamente. Nós não terminamos a escravidão no Brasil, isso é uma realidade."

Costa também acredita que a terceirização estimulou mais a precarização, como se fosse legal. “A reforma trabalhista teve um componente precarizante. Claro que, como juiz, nós aplicamos a legislação, mas nós discutimos muito essa forma. Ela foi concebida com uma alegação de gerar mais emprego, mas isso não aconteceu. No momento que você precariza, no momento que você retira direitos, você retira dinheiro da própria economia. Isso ficou demonstrado. Que a contratação, o pleno emprego, é que gera e circula riqueza.”

Precarização estrutural

Em sua manifestação, o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Lelio Bentes Corrêa, fez um resgate histórico sobre o trabalho escravo no Brasil. Segundo o magistrado, o período de escravidão instituída no Brasil deixou marcas que até hoje sobrevivem.


O presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro Lelio Bentes Corrêa, afirmou que muitas fortunas atuais têm origem na escravidão / Foto: Guilherme Lund

"Muitas fortunas atuais têm origem na escravidão", apontou. "O tráfico de seres humanos para o Brasil perdurou mesmo quando a comunidade internacional já havia proibido a prática, pela força do poder econômico, sempre interessado, até hoje, na precarização estrutural do trabalho", avaliou.

Conforme o ministro, em 2024, após 150 anos das ações mais significativas dos movimentos abolicionistas, ainda é preciso dizer o óbvio: que é o Estado e a sociedade que precisam intervir para que novos episódios de trabalho escravo não ocorram. "O exemplo que ocorreu nessa localidade há um ano vai nesse sentido: foram agentes do Estado que resgataram as pessoas", enfatizou. "Após essa ação, aumentou 240% o nível de regularidade no trabalho da região", exemplificou.

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Segundo ele, a terceirização é a porta de entrada para o trabalho escravo. “A mercantilização do trabalho humano é vetada pela Constituição e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Precisamos reagir a isso. Precisamos por meio do diálogo social encontrar maneiras que dignifique o trabalho.”

Corrêa também chamou a atenção que cabe aos magistrados do trabalho cumprir com o seu juramento no dia da posse, “proteger os direitos dos desvalidos, que não têm voz nem vez, não têm acesso aos meios de comunicação, abraçamos uma justiça que coloca os poderosos no banco dos réus. Temos compromisso com a dignidade humana, centralidade com o valor trabalho e garantia do direito humano ao trabalho decente.”

“A Justiça do Trabalho é a casa da justiça social”, afirma diretor da OIT

O diretor do Escritório da Organização Internacional do Trabalho para o Brasil, Vinícius Carvalho Pinheiro, também afirmou que a data de um ano de ocorrência do resgate dos trabalhadores em condições análogas à escravidão em vinícolas deve servir para a construção de soluções para que aquilo não volte a ocorrer.

"A OIT tem como pilar o investimento na justiça social e a Justiça do Trabalho é a casa dessa justiça social. Porque sem justiça social não há paz sustentável em nenhum lugar do mundo", destacou.


O diretor do Escritório da Organização Internacional do Trabalho para o Brasil, Vinícius Carvalho Pinheiro, destacou que sem justiça social não há paz sustentável em nenhum lugar do mundo / Foto: Guilherme Lund

Segundo André Luis Spies, subprocurador do Ministério Público do Trabalho, o trabalho escravo só traz sofrimento às vítimas e à sociedade. "É papel das instituições fazer cumprir os ditames da Constituição, o que é difícil isoladamente, mas é possível quando se age coletivamente", afirmou.

"O Grupo Móvel da Fiscalização do Trabalho é uma política muito eficiente, mas não basta resgatar, é preciso garantir qualificação, uma renda mínima, resgatar também a cidadania dessas pessoas", avaliou.

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Da mesma forma, o coordenador geral da Fiscalização do Trabalho e da Promoção do Trabalho Decente do Ministério do Trabalho e Emprego, André Esposito Roston, ressaltou que a inspeção do Trabalho atua em conjunto com as demais instituições no resgate de trabalhadores.

"Ao longo de 30 anos, foram resgatados mais ou menos 65 mil pessoas", informou. "Foram R$ 144 milhões pagos em verbas trabalhistas a essas pessoas. Apenas no ano passado, foram R$ 13 milhões", reforçou. "Hoje sabemos que é um fenômeno que está em todas as regiões do país, no trabalho rural, no trabalho urbano, no trabalho doméstico, na exploração sexual", citou. "O trabalho escravo não é uma manifestação do passado que retorna, é a precarização do trabalho que convive conosco o tempo todo, nos nossos dias", finalizou.


A diretora em exercício da Enamat, ministra do TST Delaíde Alves Miranda Arantes, reforçou a necessidade do seminário tirar daqui lições para efetivação do trabalho decente / Foto: Guilherme Lund

A diretora em exercício da Enamat, ministra do TST Delaíde Alves Miranda Arantes, observou a movimentação recente de diversas instituições com iniciativas de combate ao trabalho escravo, tais como a Organização Internacional do Trabalho e a Organização das Nações Unidas. "Esse evento soma-se a esse esforço. Que possamos tirar daqui lições para efetivação do trabalho decente, uma política adotada pela OIT desde 1999 e instituída no Brasil desde 2003", defendeu.

Participações

Também participaram da mesa de abertura o presidente do Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul, desembargador Alberto Delgado Neto, o diretor da Escola Judicial do TRF-4, desembargador Rogério Favreto, a presidente da Associação Nacional dos Magistrados do trabalho (Anamatra), juíza Luciana Paula Conforti, e a coordenadora da Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (Conatrae) e representante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Andréia Figueira Minduca.

Realização 

O seminário “Direito fundamental ao trabalho decente: Caminhos para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo” é uma realização conjunta da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (EJud4), da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT); do Programa Nacional de Enfrentamento ao Trabalho Escravo, ao Tráfico de Pessoas e de Proteção ao Trabalho do Migrante, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Observatório dos Direitos Humanos do Poder Judiciário. Ele também conta com o apoio da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (AMATRA IV); da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA); da Escola de Magistrados e Servidores do TRF da 4ª Região (EMAGIS), da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho do RS (MPT/RS). 

Lembre o caso de trabalho escravo em Bento Gonçalves

Na noite de 22 de fevereiro de 2023, Bento Gonçalves virou notícia nacional e internacional. O motivo não foram as qualidades da Serra gaúcha, mas a chaga do trabalho escravo.

Uma operação conjunta da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) com o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS), a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal resgatou trabalhadores em situação análoga à escravidão que atuavam na colheita da uva e no abate de frangos em Bento Gonçalves. Caso foi denunciado por um grupo de trabalhadores que conseguiu fugir do esquema e procurar a PRF em Porto Alegre.

:: O que acontece com os trabalhadores em situação de escravidão contemporânea após o resgate? ::

Eles trabalhavam para a empresa Fênix Serviços Administrativos que fornecia mão de obra para as vinícolas gaúchas Aurora, Garibaldi e Salton. O resgate trouxe um recorde nada digno ao estado. O Rio Grande do Sul somou 303 trabalhadores resgatados de situação semelhante à escravidão apenas em 2023. O que representou praticamente o dobro dos flagrantes de 2022, quando 156 trabalhadores foram retirados dessa condição degradante.

Segundo dados divulgados pela Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 598 operações realizadas em 2023, o Brasil resgatou 3.190 pessoas em condições análogas à escravidão. Esse número foi o maior registrado no país desde 2009, ainda no segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

* Com informações da Secom/TRT-4


Edição: Marcelo Ferreira