Há um certo pavor no ar. Direitistas, fascistas e militares em geral não se cansam de chamar qualquer esquerdista de comunista. É a palavra mágica para definir o mal, o horror. O comunismo envelheceu, caducou, morreu em quase todo mundo e só sobrevive filosoficamente em quatro países (China, Cuba, Laos e Vietnã). O outro, a Coreia do Norte, é comunismo fechado, radical, stalinista, isolado do mundo, os demais já estão inseridos, com suas facilidades e dificuldades, no mundo moderno.
:: Comício símbolo das 'Diretas Já!', que levou multidão às ruas de São Paulo, completa 40 anos ::
No Brasil, por exemplo, onde a palavra comunismo é excessivamente falada em função do governo socializante de Lula e da ignorância de muitas pessoas, nunca passou por uma real ameaça de transformação comunista. Durante o governo de João Goulart, os militares aspiravam tomar o controle da política brasileira. Como o presidente era inclinado para as questões de justiça social, com reformas de base e outros ideais, os militares passaram a considerar que a figura do governante era uma ameaça comunista. Pura fantasia e delírio.
Aqui no Brasil dos desiguais pensar em política social abrangente é um perigo para os toscos de cabeça e de espírito. Basta isso e já é comunista.
Agora, pertinho de lembrar com mais ênfase os 60 anos do golpe e do início da ditadura militar (31 de março de 1964), gostaria de lembrar um dos ataques perpetrados pelos fascistas naqueles dias posteriores ao golpe e que, agora, está em evidência na imprensa do Rio com um monólogo teatral chamado “Lady Tempestade” - a temporada acabou, mas deve continuar em breve no próprio Rio ou em outros estados. O nome da peça é baseado nos diários da advogada Mércia Albuquerque (1934-2003) e o personagem é Gregório Bezerra (1900-1983), pernambucano, uma figura histórica do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que passou 22 anos da sua vida na cadeia e infindáveis horas de tortura. No dia 2 de abril de 1964, militares amarraram o político na traseira de um jipe e o arrastaram seminu pelas ruas do Recife (PE).
Sofreu os piores espancamentos e torturas possíveis. Era um troféu do regime militar que estava se organizando para imperar por 21 anos no Brasil. A selvageria, relembra o colunista Bernardo Melo Franco de O Globo, chocou a advogada Mércia Albuquerque, que presenciou a covardia contra o velho comunista. “Gregório, apenas com um calção preto e uma corda de três pontas amarrada no pescoço, era arrastado por soldados, seguido de perto por um carro de combate, com pés que haviam sido banhados em soda cáustica, sangrando”.
Conforme lembra Franco, naquele dia Mércia decidiu ser defensora de presos políticos e virou referência na área. “Denunciou torturas, peitou coronéis, ajudou a localizar desaparecidos vivos e mortos. Para aguentar o tranco, despejou suas angústias num diário secreto, recém-publicado pela Editora Potiguariana, de Natal (RN). O livro inspira “Lady Tempestade”, protagonizado pela atriz Andréa Beltrão, apresentado no Teatro Poeira, no Rio.
"Parar é deixar a luta, é covardia"
“As prisões continuam indiscriminadamente, revestidas de imensa violência”, escreveu Mércia, em outubro de 1973. Defensora de mais de 500 presos políticos em sua história, Mércia relembra que “o terror envolve universidades, deixa famílias intranquilas e diz que a chacina não tem fim”. O leitor acompanha a advogada em peregrinação por cadeias, hospitais e necrotérios e testemunha sua revolta com os maus-tratos aos presos que recebiam comida podre e tinham pertences roubados, sangue, vômitos dentro da cela.
“Além de toda estes horrores, os presos sofriam tortura medieval, cortes provocados com tesoura e ponta de faca, queimaduras com cigarros, pau de arara, cadeira do dragão”, afirma Mércia. Morta em 2003 por problemas cardíacos, o seu diário só foi lançado em 2023 em Natal (RN). Os torturadores, para ela, eram seres necrófilos, que “vibram com a morte” e “explicam os seus atos anormais como amor à pátria.
A bravura da advogada lhe rendeu 12 prisões. Numa delas foi arremessada para fora do carro. “Não me arrependo de nada”, escreveu ela. “Luto pelos filhos dos outros, entram em minha vida, amarguram-me a existência e ainda me privam de ter filhos”, ironiza. “Nunca deixei de ajudar quem me procurava”, orgulhava-se a pernambucana, em novembro de 1973.
No livro, há passagens marcantes e memoráveis, como aquela que escreveu em 19 de maio de 1974 no seu diário: ”Sinto-me tão mal como se fosse morrer. E não pretendo por enquanto. Meu coração é um desgraçado e está sempre me pregando peças. Odiarei a pessoa que suspeita do meu mal. Não quero viver respeitada por uma saúde delicada. Todos têm vindo a apressar os meus dias. Quero ser gente, não um vaso rachado em uma vitrine que ninguém se atreve a tocá-lo para não despedaçá-lo”. Ou em 24 de janeiro de 1974: “Não sei se paro, não sei se recuo, não sei se avanço. Parar é deixar a luta, é covardia. Covardia maior é recuar. O que me resta então a fazer? É avançar. Avançar pode trazer a morte, mas o que importa se certa estou eu da minha luta? Lutar e morrer, lutar é viver, viver é lutar. Muitas vezes é melhor morrer do que viver. Conheço mortos vivos e vivos mortos. Serei morta-viva, não serei viva morta. Estou presente com meus amigos ausentes, em lembranças ternas, que ressuscitarão”.
Diários revelam mais de 500 pessoas defendidas
Depois da morte de Mércia em 2003, o seu marido, Otávio Albuquerque, por motivos afetivos, resolveu doar todo o material produzido pela advogada pernambucana ao Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte, dirigido pelo economista Roberto Monte. Segundo o portal progressista potiguar Marco Zero, o material é valioso e rendeu dissertação de mestrado e inspirou a peça teatral “Lady Tempestade”. O diário tem 182 páginas, com grande número de fotos do acervo da advogada. Na orelha do livro, o militante político pernambucano Marcelo Mário de Melo, que passou quase dez anos preso, resume a importância da advogada naqueles anos de repressão e prisões arbitrárias, muitas vezes sem qualquer notificação judicial. “Ela era um pronto socorro jurídico permanente”, diz o jornalista cearense Samarone Lima.
Nos diários de 1973-1974, são citadas 100 pessoas, entre torturadores, delegados, carcereiros e pessoas conhecidas, afirma Samarone. “O material jurídico do acervo é imenso. Ela defendeu seguramente mais de 500 pessoas. Toda a sua atuação na Justiça Militar está registrada. Mas ela guardou muitas cartas, bilhetes, telegramas, um material de toda a vida”, diz Roberto Monte.
Conforme Monte, ele lançou em 1998 o livro Zé, sobre a vida do mineiro José Carlos Novais da Mata Machado. Um dos capítulos, “A luta pelo corpo”, é todo sobre a luta da advogada Mércia para encontrar o corpo do Zé, a pedido do pai do militante, o jurista mineiro Edgar de Godoy da Mata Machado. Zé foi assassinado sob torturas no DOI-Codi do Recife em 28 de outubro de 1973, e enterrado como indigente no cemitério da Várzea. Mércia conseguiu encontrar a vala, fazer a exumação do corpo e mandá-lo para Belo Horizonte (MG), numa luta com os agentes da repressão e da Justiça Militar.
“Foi a pessoa mais corajosa que conheci. Se ela tinha medo, era segredo seu”, diz Monte. Neste momento histórico do Brasil, recordar a trajetória de Mércia é lembrar a violência e os tempos obscuros que o país viveu por 21 anos e que alguns insistem, hoje, em reviver.
Edição: Marcelo Ferreira