Termos como “cidade-dormitório” e “cidades-industriais” tornaram-se populares no século XX
Milton Santos, icônico geógrafo brasileiro, certa vez declarou que a história do Brasil também é a história da sucessão de pactos territoriais. A cada ruptura governamental corresponderia um novo arranjo político-territorial. Desta forma, cabe perguntar: qual o pacto territorial que emergiu com a criação das regiões metropolitanas brasileiras, em 1973? Uma digressão histórica pode explicar muito sobre problemáticas contemporâneas enfrentadas quanto à gestão metropolitana, recorrentemente tematizadas.
O entendimento da questão metropolitana e sua gestão como um campo de interesse público no Brasil consagrou-se a partir do Estado fortemente centralizado e ditatorial, no qual o autoritarismo e o desenvolvimentismo se locupletaram em meio a outras ações institucionais e executivas da agenda nacional de planejamento, como a elaboração de megaprojetos, a diminuição de distâncias e o desmatamento intensivo de biomas. Figuram entre as principais prerrogativas, definições precisas de zonas de acordo com critérios econômicos, a massiva coleta de dados enquanto instrumento de poder e controle, além de inúmeras desapropriações para fins industriais.
Argumenta-se, portanto, em direção a uma interpretação alimentada pelo “autoritarismo técnico e territorial”, termo aqui citado para caracterizar práticas passadas e presentes decorrentes da institucionalização da gestão metropolitana no Brasil, no que tange à nova organização conferida ao território nacional. Afinal: “o território é imutável em seus limites, uma linha traçada em comum acordo ou pela força”, citando novamente Santos. A “força” em destaque não foi proveniente do aparato voltado à coerção (terrorismo de Estado) – ou não exclusivamente dele, mas também conduzida por meio da técnica, respaldada por conhecimentos científicos, autorizada pela legislação e largamente difundida por publicações especializadas.
O território brasileiro passou a ser manejado em termos da fluidez e da circulação que era capaz de proporcionar. As técnicas aplicadas dotaram os espaços de virtualidades e estes tornam-se operacionais. O ideal de progresso esteve (e em grande medida ainda está) associado ao desenvolvimento econômico, alimentado por uma combinação de burocratização estatal com a inclusão gradual das pautas neoliberais. Em outras palavras, as regiões metropolitanas, a de Porto Alegre incluída, surgem mais como desdobramento territorial de um modelo de planejamento autoritário e menos como um espaço de gestão articulado entre poderes locais, regionais e nacionais voltado à promoção da equidade territorial e habitacional após as intensas migrações do campo para a cidade ocorridas no país desde a metade do século XX.
Mais do que falar do esvaziamento de laços de pertencimento quanto ao uso do espaço público, o Estado incidiu sobre os territórios, procurando organizá-los a partir de uma dinâmica que entendia a industrialização como a principal alternativa ao subdesenvolvimento atribuído ao Brasil junto à ordem internacional. Além disso, o reconhecimento do planejamento como um campo para a condução dos problemas urbanos por parte da opinião pública e pelo Estado ocorreu junto ao silenciamento de pontos que privilegiavam a esfera social.
Tais características ficam evidentes nas primeiras menções legislativas sobre as Regiões Metropolitanas: primeiramente, no Anteprojeto encomendado à chamada Comissão dos Juristas pelo Presidente Castelo Branco, em 1966. O documento, indiretamente, contempla o aspecto metropolitano ao citar “áreas de desenvolvimento prioritário” e prever uma “administração intermunicipal coletiva”, se necessário. O artigo 247 informa que: “Os Estados poderão, mediante autorização de dois terços de suas Assembleias Legislativas, e das respectivas Câmaras de Vereadores, estabelecer administração conjunta de alguns Municípios, visando à realização de obras ou serviços públicos, ou a outros objetivos de interesse comum”.
Tais artigos, no entanto, não foram aceitos pelo Congresso Nacional quando da aprovação da Constituição de 1967. Em 1969, outra modificação constitucional foi efetivada. O tópico metropolização ganha um artigo próprio, tão embora sua descrição seja similar àquela prevista na emenda de 1967. Em abril de 1972 o projeto já havia sido aprovado pela Câmara de Deputados, mas foi somente em junho de 1973 que as Regiões Metropolitanas brasileiras foram oficializadas. As áreas institucionalizadas foram oito: Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Belo Horizonte, Belém, Recife, Salvador e Fortaleza. Discrepâncias eram latentes: ao passo que São Paulo incluía 37 municípios, Belém contava com apenas dois e era a única representante da Região Norte. Em 1974, após a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, foi enfim criada a Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
Desta forma, o projeto nacional de metropolização e sua institucionalização sintetizaram as disputas por espaços de legitimidade na condução da gestão metropolitana no Brasil ao longo da segunda metade do século XX. Esses traços são reconhecíveis na institucionalização das RMs, que atenderam principalmente aos interesses estratégicos marcados pela concentração de renda e pela concentração espacial dos investimentos industriais e infraestruturas em grandes centros urbanos, nos privilégios legislativos concedidos à instalação de fábricas nessas localidades, em projetos de remoção de bairros residenciais em prol de indústrias e, finalmente, em projetos urbanísticos que previam a separação total dos trabalhadores dos espaços verdes, de lazer e de equipamentos culturais. Não à toa, termos como “cidade-dormitório” e “cidades-industriais” tornaram-se populares neste período para designar as cidades metropolitanas.
Voltamos, assim, ao questionamento de Milton Santos e convidamos à reflexão: quais paralelos podemos traçar entre o pacto territorial descrito neste ensaio e as reverberações deste modelo para as populações da RMPA no tempo presente?
A RMPA certamente não pode ser apreendida como um produto direto da gestão estatal do processo de metropolização. Tampouco a técnica e o autoritarismo priorizado pelo Estado ditatorial não anularam, necessariamente, embates, conflitos e questionamentos por parte de agentes e entidades diversas. Todavia, os traços estruturais que envolvem sua criação em meio ao cenário da Ditadura Civil-Militar no Brasil e da Guerra Fria, em nível global, apontam tendências que certamente encontraram assentamentos e consequências na atualidade, tais como o racismo territorial e ambiental, a classificação biopolítica dos espaços, das populações e dos serviços, além de uma distribuição desigual do direito à cidade e seus serviços respaldada muitas vezes por critérios técnicos. A essa estrutura, somaram-se no limiar do século XXI novidades associadas à financeirização do território, o greenwashing, as dinâmicas globais de gentrificação, o uso de tecnologias militares no cotidiano urbano e a informatização territorial.
Não há narrativa linear e passiva, portanto, mas os recém completos 50 anos das Regiões Metropolitanas no Brasil (1973-2023) são, portanto, uma instigante oportunidade de traçar paralelos entre o passado e presente da gestão metropolitana e uma história pública das cidades metropolitanas brasileiras.
* Danielle Heberle Viegas, Doutora em História, pesquisadora do Instituto Max Planck (Alemanha) e do Observatório das Metrópoles Núcleo Porto Alegre.
* Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko