Porto Alegre mais uma vez foi noticia nacional por conta de caso de violência policial e racismo neste final de semana. Everton Goandete da Silva, um motoboy negro foi esfaqueado na rua, neste sábado (17), por um homem branco, que o feriu próximo ao pescoço. Apesar de ter sido vítima de agressão, ele foi levado pela Brigada Militar acusado de desacato à autoridade. A situação causou revolta e fez com que centenas de pessoas realizasse, neste domingo (18), ato antirracista e contra a violência.
:: Brigada Militar do RS prende motoboy negro esfaqueado por homem branco ::
Organizado pelo Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindimoto), a mobilização aconteceu próximo ao Parque Redenção, e contou com a presença de lideranças sindicais, representantes de movimentos estudantis, deputados e vereadores de Porto Alegre. Após as falas os manifestantes saíram em caminhada.
Com a participação da bateria do Levante da Juventude, os manifestantes entoaram gritos pedindo o fim da policia militar, fora Melo e também críticas contra o governador Eduardo Leite (PSDB), que manifestou confiança nos homens e mulheres da BM em publicação nas redes sociais.
Nas falas os manifestantes também destacaram a relação do racismo estrutural no Rio Grande do Sul, estado apontado como um dos mais racistas do país, e o histórico da violência policial, em especial nas periferias. Assim como a importância de políticas públicas em combate ao racismo e letramento racial nas instituições.
“É muito difícil a gente ir a Brasília, protestar contra os aplicativos, quando o nosso agressor também está aqui do lado de casa. Nosso agressor talvez seja o Estado, não só as plataformas digitais, mas também o Estado, que precariza nosso trabalho. Que faz um negro ser morto”, ressaltou o diretor do Sindimoto e entregador por aplicativo, Jean Clezar.
Sobre o caso
No dia da agressão, Everton estava próximo à esquina da rua Miguel Tostes com a avenida Protásio Alves, onde se concentram trabalhadores que entregam refeições para bares e restaurantes da região. O caso contra o motoboy ganhou notoriedade porque o professor Renato Levin Borges, de 40 anos, estava próximo ao local e gravou e publicou um vídeo em suas redes sociais. Algo que, conforme aponta a liderança da Vila Cruzeiro Lidio Santos não costuma acontecer. “Isso que aconteceu com o Everton ainda bem que as pessoas gravaram. Mas com Bruno que também é motoboy preto na Cruzeiro, nós não conseguimos gravar. Eles pisaram na cabeça do Bruno. Todo motoboy preto é suspeito, todo trabalhador preto é suspeito”, ressaltou.
De acordo com o diretor jurídico do Sindimoto, Felipe Espindola Carmona, o que aconteceu com Everton é uma situação frequente. Ele lembrou que na semana passada uma motogirl foi agredida por um agente da lei na Avenida Ipiranga.
“Muitos motociclistas, trabalhadores, jovens são precarizados na sua forma de trabalho. O Everton estava lá aguardando uma chamada de entrega porque as empresas estão deixando cada vez mais de vincular os trabalhadores, de dar condições de trabalho. E isso que aconteceu no sábado foi exatamente um dos motivos de estarmos lutando contra esse tipo de precarização.
Conforme pontuou o dirigente, Everton poderia ter reagido e revidado seu agressor, contudo chamou a polícia. “E a policiai fez exatamente o que a gente não espera de um agente de segurança, de forma preconceituosa, pegou e apontou o Everton, e o transformou de vítima em agressor. Isso não pode acontecer. Estamos fazendo esse ato para conscientização da população”, ressaltou.
Presente ao ato, a atual presidenta do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), a advogada Marina Ramos Dermmam, afirmou ao Brasil de Fato RS que o episódio é revoltante em todos os aspectos, a começar por um cidadão querer agredir um trabalhador, um trabalhador negro no exercício da sua profissão. Depois a conduta da Brigada Militar que foi contra a pessoa que foi vitima de uma tentativa de homicídio.
Integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares, Marina relatou que acompanhou o desenrolar da situação no Palácio da Polícia e pode ter o relato do tratamento completamente desigual que foi feito entre vítima e agressor. “Enquanto a vítima estava algemada em uma sala em separado, o agressor estava na rua conversando com os policiais militares. Esse tratamento por si, a abordagem e o fato de algemar, temos que repudiar veementemente."
Marina também destacou a postura do governador Eduardo Leite, lembrando que em 2020, quando houve o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, conhecido como Beto, foi instituído o Grupo de Trabalho Combate à Violência Contra a População Negra (Ordem de Serviço n. 008/2020). “O CNDH está oficiando o governador para em caráter de urgência informar o que efetivamente foi feito nestes quatro anos das conclusões destas ações sugeridas por esse GT. Os episódios que a gente têm de racismo no estado apontam que ele é enraizado, estrutural e que o governo está sendo omisso em relação ao combate a essas práticas”, frisou.
O entregador foi liberado ainda na tarde de sábado. De acordo com o advogado Ramiro Goulart, foi registrado um Boletim de Ocorrência por lesões corporais contra o agressor, que ainda pode ser modificado. A BM intimou Everton a depor nesta segunda-feira (19) como vítima da agressão ocorrida no sábado.
Ações
Nas redes sociais Eduardo Leite determinou que, via Corregedoria da Brigada Militar, fosse aberta uma sindicância para ouvir imediatamente testemunhas e apurar as circunstâncias da ocorrência, com a mais absoluta celeridade. “Renovo minha absoluta confiança na Brigada Militar e nos homens e mulheres que compõem nossas forças de segurança. Inclusive, em respeito aos dedicados profissionais que as integram, é que a apuração da conduta será célere e rigorosa", escreveu.
Os conselhos Nacional e Estadual dos Direitos Humanos, as/o deputadas/o Fernanda Melchionna (PSOL), Daiana Santos (PCdoB), Matheus Gomes (PSOL) e Laura Sito (PT) acompanharão a sindicância.
O ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirmou neste domingo (18) em seu perfil no X que o episódio retrata como o racismo "perverte" as instituições brasileiras, e anunciou que irá, junto à ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, contatar autoridades gaúchas e ajudar na construção de políticas de combate ao racismo. Ele anunciou que o governo federal vai acompanhar o caso.
A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul (DPE/RS), por meio do Núcleo de Defesa da Igualdade Étnico-Racial (Nudier) e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDDH) está apurando o caso.
A Instituição já expediu ofício solicitando informações sobre a abordagem feita pela Brigada Militar. Além disso, os defensores se reuniram com Everton nesta segunda-feira (19) para ouvir a sua versão. A Defensoria também irá propor à Brigada Militar um curso de capacitação em relações raciais.
É preciso que o poder público escute nossas vozes
“Estamos aqui juntos prestando a nossa solidariedade ao nosso companheiro Everton, mas queremos responsabilização. Exigimos que o governador Eduardo Leite escute as nossas vozes porque nós não temos confiança na polícia. Temos medo da polícia. Estamos nas mãos da polícia que nos mata todos os dias", afirmou a integrante do Movimento Negro Unificado Graziela Oliveira.
Ela também chamou atenção sobre o silenciamento do prefeito Sebastião Melo (MDB), que até o momento não se manifestou sobre o ocorrido. “É impossível nós termos um gestor que diz zelar pela nossa cidade e estar silenciado em um momento como este”, ressaltou.
Além disso, a militante também enfatizou ser inaceitável ainda estar aguardando pela definição de qual empresa acoplará as câmeras nas fardas dos policiais. “Exigimos a definição desta empresa já. Queremos fardas com câmeras, queremos acompanhar. Se ontem o Everton não tivesse pessoas filmando como isso iria passar? Exigimos também letramento racial na formação dos policiais, queremos o movimento negro fazendo parte deste processo porque sem nós não vai acontecer”, afirmou.
O governo do estado revogou em abril de 2023 o processo da licitação que estava em andamento para compra dos equipamentos devido à necessidade de ajuste nas especificações.
Primeiro ouvidor geral negro da Defensoria Pública da União do RS, Gleidson Renato Martins Dias, lembrou os casos de racismo envolvendo agentes da polícia no RS como em outros estados.
“Em 1980 aqui no RS houve o caso do homem errado. Temos o caso da Cláudia que foi arrastada por uma viatura Nós temos o caso do Genivaldo que foi asfixiado pela Polícia Rodoviária Federal. Ou seja, o que aconteceu aqui em Porto Alegre não é um caso isolado, é a responsabilidade direta do governador Eduardo Leite, é a responsabilidade direta do secretário de Segurança. Este estado já teve política para combater o racismo policial no governo de Olívio Dutra”, recordou
De acordo com ele, é preciso comprometer os servidores da área da Segurança Pública, dos servidores das Forças Armadas para entender o seu papel constitucional. “Um policial que respeite a Constituição não pode ser racista, isso é responsabilidade do governador do estado, do governo federal.” Ele também sugeriu a construção, a partir do ato, de um Fórum Nacional para pressionar, mobilizar o novo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, para uma ação nacional para que se consiga modificar a situação através de política pública. “Não é só a polícia do RS, o racismo na Segurança Pública é endêmico.”
Integrante do movimento policiais antirracistas, Guilon Lopes Martins ponderou que nem todos os policiais estão comprometidos com a questão do racismo. “Nós que estamos atuando diretamente dentro da polícia a gente precisa escutar de colegas que trabalham conosco, lado a lado que racismo é mimimi. Eu, enquanto policial penal, assim como tantos colegas da polícia penal, da polícia civil e da militar que não concordamos mais com o racismo. Ano passado iniciamos uma discussão através do gabinete da deputada Laura [Sito] para implementação de letramento racial nas academias da polícia. Não basta que esse camarada seja enviado para corregedoria se o corregedor não sabe identificar o que é racismo. É urgente a implementação de letramento racial em todas as instituições, e iniciar pela Segurança Pública”.
O policial ainda pontuou que faz coro a todos que afirmam que a polícia é a instituição mais racista do Brasil. “Eu concordo e dou eco a todas essas falas. É preciso ter vários de nós para modificar esse sistema racista de dentro para fora. Para cada ação haverá uma reação. Racistas não passarão”, conclui.
O Movimento Policiais Antirracistas lançou uma nota onde expressa seu profundo repúdio ao incidente ocorrido em Porto Alegre. De acordo com o movimento o que acontece com Everton é um reflexo alarmante do racismo estrutural que ainda permeia as instituições de segurança no Brasil, evidenciando uma preocupante tendência de criminalização das vítimas negras.
Violência policial no estado
De acordo com dados da DPE/RS, o número de atendimentos envolvendo violência policial aumentou 41% em 2022, na comparação com o ano de 2021. Segundo a entidade ao longo de todo o ano de 2021 foram registrados 751 atendimentos, enquanto que, em 2022, esse número subiu para 1.061. Entre os 625 casos recebidos apenas pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDDH), 493 envolveram relatos de violência perpetrada por agentes da Brigada Militar; 88 por agentes da Polícia Civil; 13 por agentes de Guardas Municipais; oito casos com relatos de agressão perpetrada, conjuntamente, por agentes da Brigada Militar e da Polícia Civil; quatro por agentes da Susepe; e 19 casos em que não houve identificação da instituição envolvida.
Uma pesquisa realizada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) aponta que o racismo estrutural marca a ação de agentes da Segurança Pública. Após um levantamento sobre a abordagem policial em seis territórios da Região Metropolitana de Porto Alegre, esta identificou que ser negro, jovem e ter tatuagem são as três principais características que levam uma pessoa a ser considerada suspeita.
A pesquisa faz parte do trabalho de assistência técnica internacional que o escritório da UNODC no Brasil realizou junto com o governo do estado, entre novembro de 2015 e fevereiro de 2023, para acompanhar o que se denomina como “integridade do uso da força”.
“Infelizmente desde que a gente nasce somos ensinados e ensinadas de que se a polícia vier e estiver na tua comunidade realizando uma operação tu não deves correr porque é mais perigoso para ti. Desde que a gente nasce nossa família nos ensina que temos que andar bem arrumadinho porque a chance de acontecer com a gente se tivermos arrumadinhos é menor”, expôs a deputada estadual Laura Sito (PT), que também preside a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
De acordo com a parlamentar, o caso do Everton passa uma mensagem de que "se tu é negro neste estado, se tu sofre violência, tu não deve chamar a polícia. Porque o Estado não está a serviço da tua proteção!".
A deputada federal Daiana Santos (PCdoB), em sua intervenção destacou a precarização por qual passa o trabalho dos trabalhadores de aplicativos. Segundo afirmou a parlamentar é preciso compreender como se estrutura o capitalismo, as relações sociais no país.
“Não dá mais para nos reunirmos para fazer o debate a cerca do fato consumado, temos que antecipar isso. Se é responsabilidade do Estado, que este Estado seja punido. Como parte da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Federal levarei esse caso adiante dentro daquela casa”, afirmou. A parlamentar também lembrou do caso de denúncia em relação ao conteúdo do curso de recepção aos novos nomeados para atuarem na Secretaria Municipal de Educação (Smed) de Porto Alegre em que propaga a questão do racismo reverso.
Na tarde desta segunda-feira (19), a deputada acompanhou o relato de Everton no 9º Batalhão da Polícia Militar, como vice-presidenta da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara de Deputados e Deputadas.
“Mesmo diante da repercussão, mesmo diante das filmagens, o boletim de ocorrência saiu como lesão corporal, de forma escandalosa. Por que é importante um ato como no dia de hoje? Pelas questões urgentes e necessárias de um país de racismo estrutural em que a juventude negra passa por isso sistematicamente nas periferias, supermercados, nas ruas, na vida cotidiana. E que para nós brancos privilegiados por esse modelo nos cabe não só não ser racista, mas ser antirracista”, ressaltou a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL).
Para a deputada federal Reginete Bispo (PT) a polícia tem servido de braço armado do Estado para dar sustentação ao racismo institucional, estrutural que persiste e resiste no país. “O racismo desumaniza, estabelece as relações de poder no país, os privilégios que diz onde cada um tem que ficar. E a sociedade brasileira, o Estado brasileiro já disse inúmeras vezes e reafirma todo dia com a violência policial e todas as formas de violência qual é o lugar que temos que ficar. Por isso essa manifestação é um ato de resistência.”
Também se manifestaram o deputado estadual Miguel Rossseto (PT) e o vereador Jonas Reis (PT). Estiveram presentes ao ato ainda o deputado Matheus Gomes (PSOL) e a vereadora Karen Santos e o vereador Roberto Robaina, ambos do PSOL, assim como representantes do mandato da deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB).
Em sua conta no X, o senador Paulo Paim (PT) ressaltou que a Câmara não pode se omitir. "É urgente a aprovação do projeto que trata da abordagem policial (PL 5231/2020), já aprovado pelo Senado. Chega de abordagens truculentas, racistas, homofóbicas, discriminatórias e preconceituosas, veemente ataque aos direitos humanos e à vida."
* Com informações do Sul21.
Edição: Katia Marko